a dor da liberdade

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ALONE IN THE DARK,
Will Cookson

capítulo dois

— Você vai morrer de fome, se não comer.

O rei me tirava da cela uma vez por semana para um jantar.
Era o único momento em que via minha mãe, do outro lado da mesa.
Não podia abraça-la ou falar muito com ela.

Eu odiava sentir tanta fome.
Odiava precisar comer.
Odiava porque aquela comida não era um presente do rei.
Tudo no prato estava banhado com pó de freixo.

— Estou bem. – cruzei os braços.

— Não seja tola. – apontou o garfo em suas mãos para mim. – Seus poderes não vão lhe servir se estiver fraca demais para usá-los.

Ele estava errado.
Serviria sim.
Mas meu estômago protestou em alta exclamação que discordava de mim.

— Coma! – a voz de minha mãe soou em uma clara entonação que beirava ordem e súplica.

Uma semana sem me alimentar e meu corpo já refletia a falta daquilo.
E ela notava.
Notava tudo.

Agarrei o garfo tentando ignorar a fantasia de enfia-lo na jugular do rei e me obriguei a comer.
Por ela.
Ela não precisava se preocupar comigo.

Quando me levaram para a cela ao final, mais uma vez um dos guardas tentou passar a mão em mim.
Quebrei-lhe um dedo ou a mão inteira. 
Só ouvi seu rugido de dor antes de ser jogada ao chão, dentro da cela imunda.

Toda noite eu repassava em minha mente cada pensamento bom.
Cada momento bom.
Eu precisava permanecer sã.
Precisava manter a fé de que sairia dali.
De que veria a todos outra vez.

Eu ainda ousava divagar pela mente dos soldados tentando achar qualquer informação útil.
Mas não era eles que sussurravam informações para mim. Era o maldito caldeirão que fez de mim, seu diário pessoal.
Ao que tudo indicava, a comida a base de freixo não era capaz de impedi-lo de se comunicar comigo.
Me contou que uma guerra estava prestes a começar. 
O rei de hybern queria derrubar a muralha.
Maldito.
Será que ele havia descoberto sobre velaris? Não podia.
Pela mãe! Não podia.

Os dias passaram e em algum momento eu perdi a noção de quanto tempo estava ali.
O caldeirão me contou que havia ressuscitado outra pessoa e feito mais duas.
Eu não entendia o que aquilo significava mas pedi que não fosse algo ruim.
Como a tecelã ou qualquer um de seus irmãos.
As sombras que Az me ensinará a conjurar continuavam silenciosas.
Mas estavam sempre ali.
Me envolvendo.
Lembrando-me que não estava sozinha.
Que nunca estaria.

O palácio fora invadido.
Vi a proteção a sua volta cair.
E ao reconhecer o cheiro, eu estava chorando.
Illyrianos. Mais que isso, meus illyrianos!
Tinha que ser eles.
Agarrada as barras de ferro eu esperei em lágrimas.
Esperei que fosse esse exato momento em que o rei fosse me libertar.
Que me usasse contra eles.
Qualquer coisa que sua mente doentia pensasse apenas para poder ver meu irmão outra vez.
Que eles me notassem e me salvassem.

Mas não aconteceu.
Porque não sabiam.
E o rei não queria que soubessem.

Gritei até minhas cordas vocais doerem.
Mas estava a metros de distância do salão principal onde eles deveriam estar.
No outro dia pela manhã, um rei raivoso pediu que me amarrasem a um tronco e com um artigo de couro minhas costas foram marcadas duas vezes.

O rei me mantinha e eu não fazia idéia do motivo.
O que só alimentava meu ódio.

Quando a guerra chegou, achei mais uma vez que seria libertada.
Não aconteceu.
O caldeirão se mostrava um ótimo fofoqueiro ao meu contar tudo.
Cassian o adoraria. Sem dúvidas.
Ele me contava até mesmo o que eu não queria saber. Choramingava o tempo todo por algo que lhe roubaram.

Ele absorveu e libertou uma criatura mais antiga e poderosa do que todo nosso reino.
Eu temi por não saber em qual lado ela lutava.

E ali, dentro daquela cela amaldiçoada, com a companhia dos ratos, encolhida em um canto, senti toda a batalha.
Alguém tentava inutilmente controlar o caldeirão.

Engasguei em um soluço quando ele me contou que o rei estava morto tentando me manter firme ao último fio de esperança de que sairia dali.

Então eu senti.
O caldeirão confirmou como se sentisse minha dor.
A terra estremeceu.
E eu me parti.
As sombras se agarraram em mim como que para me dar apoio.
Eu quebrei e atingi o chão em queda livre.

Rhys!

A escuridão que eu tanta amava me acariciou e pedi silenciosamente que me desfizessem junto de si.

Rhys estava morto.

Enfiei a cabeça entre as mãos.
Xingando.
Amaldiçoando.
Odiando a mim mesma por não ter tentado fugir antes que o freixo aniquilsse minhas habilidades.

Me conte mais, me fale sobre os outros.
Por favor.
Por favor.
Por favor.

O caldeirão se silenciou.
Me abandonou chorando e me revirando em minha própria angústia.

Mas a cela se abriu.
Me libertando.
E de repente eu não queria estar.
Não onde ele não estava.
Eu conhecia meu irmão.
Ele era mais forte que qualquer grão feerico já nascido.
Não podia estar morto.
Se ele tivesse, todos estariam.
E eu não poderia viver com aquilo.

Algo estava errado.
O caldeirão havia mentido.
Tinha que estar mentindo.

Tentei inutilmente conjurar minhas asas. 
Sabia que demoraria dias para retomar qualquer resquício de poder.
Maldito veneno.

Eu poderia andar pelas cortes até retoma-las ou até chegar a Velaris.
Era capaz.
Precisava acreditar que sim.
Eu conseguiria voltar para casa.
Tinha que conseguir.

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