Gostava tanto de você

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Alice
Alguns minutos se passaram desde a saída da Nádia. Ou horas. Eu sabia que isso ia acontecer em algum momento. Nós duas somos livres demais para seguirmos presas em uma relação infeliz. No início foi bom. Nós demos muito certo por um tempo.

Amargurada, eu me dirijo até a cozinha. Sinto a maquiagem se espalhar irregularmente manchando meu rosto. Pego uma garrafa de vinho e me sirvo uma taça. Depois outra e mais outra. Faço o mesmo com os cigarros, até o cinzeiro ficar cheio e as cinzas transbordarem. Estava prestes a me servir mais uma taça quando sinto meu celular vibrar no bolso da minha calça. Por alguns instantes eu alimento a esperança tola de ser uma ligação da Nádia. Raquel. Observo a tela do telefone por mais alguns segundos antes de atender a chamada:
-Oi! -o tom de voz animado de Raquel me enjoa-
-Eu estou no meio de uma pseudo bebedeira, o que você quer? -meu tom de voz revela o efeito do álcool. Eu pego um cigarro e o acendo em um movimentou rápido com o isqueiro-
-Você está bem, Alicia? -Raquel me pergunta falsamente preocupada-
-Eu estou solteira! -anúncio em um tom de comemoração- minha mulher me deixou.
-Eu sinto muito. Foi pelo que aconteceu entre a gente?
-E porque mais seria? -eu rio consumida pela amargura de ter perdido a única pessoa que me amou um dia-
-Você está na sua casa? Eu vou encontrá-la -Raquel afirma e desliga em sequência-

Pego mais um cigarro enquanto mergulho em um poço de mágoas e lembranças nostálgicas.
Os cabelos crespos da Nádia. Sorrio quase involuntariamente ao lembrar da sua textura única. O contraste da minha pele branca e a sua pele escura. Os seus olhos negros, lábios largos e seios pequenos e contidos. Resisto ao impulso de ligar para ela implorando seu
perdão. Não sei em que ponto, mas o nosso relacionamento se perdeu. E depois disso tudo começou a ficar ruim, até nossa vida ficar em ruínas. A minha infidelidade é só a ponta do iceberg perto do que eu e ela temos passado nos últimos meses. Me pergunto se ainda estaríamos juntas se tivéssemos algo que nos ligasse, além do casamento. Um filho, talvez. Sinto uma onda de arrependimento ao me lembrar das nossas incansáveis discussões sobre ter um. Talvez, talvez se eu tivesse dito sim para aquela maldita inseminação artificial, talvez a Nádia ainda estivesse aqui. Talvez.

Raquel
Saio de casa apressada. A Alicia era uma filha da puta na faculdade, mas me ajudou semana passada e estou devendo isso a ela.
Chego na casa de Alicia -cujo o endereço eu não sabia até ligar para a polícia e exigir tais informações- e observo cuidadosamente sua vizinhança. A rua extensa possui apenas casas. Os brinquedos espalhados pelos gramados denunciam a categoria desse lugar. Suponho que elas sejam o único casal de lésbicas no meio dessa rua cheia de famílias de comercial de margarina heteronormativos.
Me aproximo da porta branca de madeira e toco a campainha. Depois de alguns minutos de espera, Alicia atende:
-Que surpresa. O que faz aqui? -ela me cumprimenta grosseiramente. Alicia bufa a fumaça do cigarro no meu rosto, gracejando-
-Achei que você estivesse com problemas -eu falo cuidadosamente-
-Todo mundo sempre tem problemas -Alicia ameaça fechar a porta, mas a impeço. Sarcástica e evasiva, ela me convida para entrar- Quer entrar?

[música tema do capítulo]
Gostava Tanto de Você
-Tim Maia

Ela *finalizada* 2020Onde histórias criam vida. Descubra agora