Mil Anos

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Alicia
Alguns dias se passaram e chegou o dia do enterro da minha pobre mãe. Convidei Raquel para me acompanhar para esse evento imponente e excepcional.
Eu e Raquel avistamos um aglomerado de pessoas no cemitério vazio. Divergindo do imaginário comum, hoje não é um dia chuvoso como sempre retratado nos filmes. O mais belo céu azul ilumina as lápides e a meia dúzia de pessoas cercando o caixão da minha mãe soam desconfortáveis com o sol insistente. Nos aproximamos e eu reconheço as meia dúzia de pessoas gradativamente. Cosette, vizinha da minha mãe a séculos. Achei que essa velha já tinha morrido, penso ao vê-la em lágrimas sobre o caixão. Júlio, o jardineiro. Algumas das suas falsas amigas e, por fim, Ander. O olhar do meu irmão não soa triste, apenas sério. Aposto que ele está doido para ir embora e cuspir no caixão da velha imunda que chamávamos de mãe:
-Oi -eu me aproximo do Ander. É evidente como os anos se passaram para ele. Depois que se casou, nunca mais o vi-
-Ali -Ander me abraça. Estranho o uso do meu apelido infantil- e você é? -ele se direciona a Raquel-
-Raquel. Sou amiga -eu a interrompo-
-Minha namorada. A Raquel é a minha namorada -Raquel me lança um olhar e sorriso encantados-
-Você e a Nádia terminaram?
-A algumas semanas -eu fico em silêncio. Lanço um olhar para o caixão. Eu e meu irmão ignoramos o discurso clichê do padre enquanto observamos dois coveiros abaixarem o caixão preenchido pelo corpo sem vida da minha mãe lentamente-
-Por que você não gosta dela? -Raquel me questiona-
-Ela era uma filha da puta. Me odiava. Uma vez -sinto uma pontada triste no meu peito- ela cortou meu cabelo, enquanto eu dormia. Foi meses antes de eu ir a faculdade. Por isso que meu cabelo era curto.
-E é por isso que hoje em dia você os mantém longos? -eu assinto- ela mexia com a sua feminilidade.
-Em partes eu acho que ela tinha inveja. Inveja do meu ruivo, do meu corpo, minha juventude. Sinto que ela viu a sua vida morrer quando deu a luz a mim.
-Voce não quer ter um filho?
-Não -eu desdenho da pergunta como se a resposta fosse óbvia- não quero colocar ninguém nesse mundo de merda. 
-Ela amava enaltecer o seu irmão?
-Sim.
-Eu aposto que ela era uma mãe narcisista.
-Pare de usar sua psicologia comigo, Raquel -eu brinco, considerando sua fala-

No final da celebração fúnebre, eu cuspo na lápide da minha mãe e deixo o cemitério ao lado da Raquel.

2014
Raquel
Eu e a Alicia já estamos juntas a dois anos. Ela é uma madrasta incrível para a Paula, e me apoiou muito no divórcio e na prisão do Alberto. Meu ex-marido foi sentenciado a 8 anos por tentativa de feminicídio, mas talvez saia mais cedo por bom comportamento.
Hoje eu convidei a Alicia para jantar na minha casa. A Paula foi para a minha mãe, então teremos a noite toda a sós. Minha namorada chega pontual, como sempre. Ela usa um decote incrivelmente sensual. Os cabelos ruivos fortes contrastam com o azul neutro do vestido.
Depois do jantar, eu me aproximo de Alicia. Ela me lança um olhar curioso ao ver me ajoelhada na sua frente. Eu tiro o anel de noivado delicadamente do bolso do meu casaco e a ofereço em um movimento clichê. Ela sorri e me abraça. Suponho que isso seja um sim.

[musica tema do capítulo]
A Thousand Years
-Christina Perri

Ela *finalizada* 2020Onde histórias criam vida. Descubra agora