XXVIII

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Estávamos no oitavo dia de minha pane. Justamente quando bebia a última gota de minha provisão de água, foi que ouvi a história do vendedor. 

- Ah! - disse eu ao principezinho. - são bem bonitas as tuas lembranças, mas eu não consertei ainda meu avião, não tenho mais nada para beber, e eu seria feliz, eu também, se pudesse ir caminhando passo a passo, mãos no bolso, na direção de uma fonte! 

- Minha amiga raposa me disse...

- Meu caro, não se trata mais de raposa! 

- Por quê? 

 - Porque vamos morrer de sede... 

Ele não compreendeu o meu raciocínio, e respondeu: 

- É bom ter tido um amigo, mesmo se a gente vai morrer. Eu estou muito contente deter tido a raposa por amiga... 

- Não avalia o perigo.. - disse eu. - Não tem nunca fome ou sede. Um raio de sol lhe basta...  

Mas ele me olhou e respondeu ao que eu pensava:

- Tenho sede também... procuremos um poço... 

Eu fiz um gesto de desânimo: é absurdo procurar um poço ao acaso, na imensidão do deserto. No entanto, pusemo-nos a caminho. 

Já tínhamos andado horas em silêncio quando a noite caiu e as estrelas começaram a brilhar. Eu as via como em sonho, porque tinha um pouco de febre, por causa da sede. As palavras do principezinho dançavam-me na memória: 

- Tu tens sede também? - perguntei-lhe. 

 Mas não respondeu à minha pergunta. Disse apenas: 

- A água pode ser boa para o coração... 

Não compreendi sua resposta e calei-me... Eu bem sabia que não adiantava interrogá-lo.

Ele estava cansado. Sentou-se. Sentei-me junto dele. E, após um silêncio, disse ainda:

- As estrelas são belas por causa de uma flor que não se vê... 

Eu respondi "é mesmo" e fitei, sem falar, a ondulação da areia enluarada. 

- O deserto é belo. - acrescentou... 

E era verdade. Eu sempre amei o deserto. A gente se senta numa duna de areia. Não se vê nada. Não se escuta nada. E no entanto, no silêncio, alguma coisa irradia...  

O que torna belo o deserto.. - disse o principezinho. - ... é que ele esconde um poço nalgum lugar.  

Fiquei surpreso por compreender de súbito essa misteriosa irradiação da areia.Quando eu era pequeno, habitava uma casa antiga, e diziam as lendas que ali fora enterrado um tesouro. Ninguém, é claro, o conseguira descobrir, nem talvez mesmo o procurou. Mas ele encantava a casa toda. Minha casa escondia um tesouro no fundo do coração... 

- Quer se trate de casa, das estrelas ou do deserto... - disse eu ao principezinho. - o que faz sua beleza é invisível!  

- Estou contente, - disse ele. - que estejas de acordo com a raposa. 

Como o principezinho adormecesse, tomei-o nos braços e prossegui a caminhada. Eu estava comovido. Tinha a impressão de carregar um frágil tesouro. Parecia-me mesmo não haver na Terra nada mais frágil. Considerava, à luz da lua, a fronte pálida, os olhos fechados, as mechas de cabelo que tremiam ao vento. E eu pensava: o que eu vejo não é mais que uma casca. O mais importante é invisível... 

Como seus lábios entreabertos esboçassem um sorriso, pensei ainda: "O que tanto me comove nesse príncipe adormecido é sua fidelidade a uma flor; é a imagem de uma rosa que brilha nele como a chama de uma lâmpada, mesmo quando dorme..." Eu o pressentia então mais frágil ainda. É preciso proteger as lâmpadas com cuidado: um sopro as pode apagar...  

E, caminhando assim, eu descobri o poço. O dia estava raiando. 

- Os homens, - disse o principezinho. - se enfurnam nos rápidos, mas não sabem o queprocuram. Então eles se agitam, ficam rodando à toa... 

E acrescentou:

- E isso não adianta... 

O poço a que tínhamos chegado não se parecia de forma alguma com os poços do Saara. Os poços do Saara são simples buracos na areia. Aquele, parecia um poço de aldeia.Mas não havia ali aldeia alguma, e eu julgava sonhar. 

- É estranho. - disse eu ao principezinho. - tudo está preparado: a roldana, o balde e acorda.

Ele riu, pegou a corda, fez girar a roldana. E a roldana gemeu como gemem os velhos cata-ventos quando o vento dormiu por muito tempo.   

- Tu escutas? - disse o príncipe. - Estamos acordando o poço, ele canta... 

Eu não queria que ele fizesse esforço:

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Eu não queria que ele fizesse esforço:

- Deixa que eu puxe, disse eu, é muito pesado para o teu tamanho. 

Lentamente, icei o balde até em cima, e o instalei com cuidado na borda do poço.Nos meus ouvidos permanecia ainda o canto da roldana, e na água, que ainda brilhava, via tremer o sol. 

- Tenho sede dessa água. - disse o principezinho. - Dá-me de beber...  

E eu compreendi o que ele havia buscado! 

Levantei-lhe o balde até a boca. Ele bebeu, de olhos fechados. Era doce como uma festa. Essa água era muito mais que alimento. Nascera da caminhada sob as estrelas, do canto da roldana, do esforço do meu braço. Era boa para o coração, como um presente.Quando eu era pequeno, todo o esplendor do presente de Natal estava também na luz da árvore, na música da missa de meia-noite, na doçura dos risos... 

- Os homens do teu planeta. - disse o principezinho. - cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim... e não encontram o que procuram...  

- Não encontram. - respondi... 

- E no entanto o que eles buscam poderia ser achado numa só rosa, ou num pouquinho d'água... 

- É verdade. 

E o principezinho acrescentou: 

- Mas os olhos são cegos. É preciso buscar com o coração... 

Eu havia bebido. Respirava facilmente. A areia é cor de mel quando amanhece. E acor de mel me fazia feliz. Por que haveria eu de estar triste?... 

- É preciso.. - disse baixinho o príncipe. - que cumpras a tua promessa. - Ele estava, de novo, sentado junto de mim. 

- Que promessa?

- Tu sabes... a mordaça do meu carneiro... eu sou responsável pela flor!  



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