Liebe

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A semana pareceu durar uma eternidade sem algo interessante para fazer. Me ocupei com as tarefas da padaria, porém o tédio insistia em me perseguir.

Devo admitir que meu anseio pela presença de Victor, e acima de tudo, a esperança de uma conversa agradável me satisfazia de tal forma, que antes eu não havia notado, o quanto precisava de mais momentos como esse, de contato humano.

Na noite anterior ao nosso encontro, fiz questão de guardar para o piquenique alguns Lebkuchen da padaria, e hoje, logo após acordar, preparei um pouco de chocolate quente que, para minha felicidade, ficou bem cremoso.

Coloquei um vestido azul de tecido simples, mas bonito com mangas longas e fechado até o pescoço. Penteei meu cabelo e resolvi usar eles soltos, apenas com alguns grampos para criar uma pequena volta dos lados. Quando me vi no espelho nem acreditei que era eu mesma, toda arrumada desse jeito, estava me sentindo muito elegante. Pus os lanches em uma cesta, respirei fundo... e saí.

Era nítido que enquanto caminhava até o local de encontro, as pessoas na rua me encaravam, mas seus olhares pareciam diferentes do comum.

Em frente ao mercado, Victor estava deslumbrante como sempre, com seus cabelos ondulados até o ombro, e vestindo um elegante casaco longo preto com detalhes em verde. Trazia consigo uma pequena bolsa de couro que eu suponha ter algo para comer.

- Eu duvido que alguém adivinhe que nós estamos apenas indo a um piquenique. - Digo sorrindo e agradecendo a Deus pelo clima me permitir usar roupa fechada, já que estava um frio arrebatador.

Victor demonstra uma expressão de surpresa em seu rosto.

- Você leu meus pensamentos, pois eu ia dizer isso. - Com os olhos fixos nos meus, ele ergue seu braço em direção a mim. - Vamos, madame?

👣👣

Chegando ao Morro do Cortiço, Victor parecia deslumbrado com a visão das diversas montanhas ao nosso redor, se aproximando cada vez mais das beiradas para olhar melhor um detalhe ou outro.

- Cuidado para não cair, hein. - Minha voz sai um pouco abafada devido ao cansaço da trilha. - Não quero perder meu único amigo médico da cidade.

Como se eu tivesse outros amigos.

Me acomodo no chão sob o pano que Victor trouxe e mordisco um Lebkuchen, enquanto observo a bela paisagem a minha frente.

Era engraçado ver a primeira reação de uma pessoa quando apresentada a algo novo, parecia como um bebê descobrindo a vida.

Victor se junta ao meu lado e pega um Lebkuchen da cesta, sem eu nem oferecer. Logo ele vê a jarra com chocolate e se serve, seus olhos vão indignados em direção ao copo.

- Isso está divino! Como que fez ficar tão cremoso assim? - Fala indignado, partindo para outro gole.

Brevemente digo a ele a minha receita, e logo começamos a conversar sobre assuntos do nosso cotidiano. Conto sobre a história da minha família e ele da sua, como seus pais trabalharam dia e noite para que pudesse ter um ensino adequado e que quando estava prestes a terminar seus estudos, seus pais morreram em um assalto. Não só a chance de trabalhar para o Palácio havia atraído Victor para a Cidade Imperial, mas também a oportunidade de se ver mais livre da violência da Capital, que tanto o fez perder. E, então pegou todo dinheiro que ainda possuía e bravamente se mudou para cá, onde não conhecia ninguém mas enxergava como um local de recomeço e esperança.

- Então como pode perceber, não tenho herança, e sem trabalho em pouco tempo não teria o que comer, pois minhas economias já estão praticamente esgotadas.

Seu olhar parecia buscar algum sinal de resposta em meu rosto, então respondi que sua situação financeira para mim não faria diferença desde que ele também não se importasse com os comentarios na cidade sobre mim.

- Eu ouvi certos boatos acerca de uma menina que falava com uma senhora morta mas não dei ouvidos. Não acredito em histórias de fantasmas, se é o que quer saber. - Ele deu de ombros e tentou pegar minha mão como um sinal de carinho.

Ah se ele soubesse que não são apenas histórias, será que ele acreditaria em minhas palavras ou me acharia uma louca? Esse pensamento me deixa aflita.

- Mas bem que seria útil um dom como esse no último caso que peguei no trabalho.

Essa semana, a polícia encontrou em uma hospedaria o corpo de uma mulher idosa. Ela a primeira vista parecia estar dormindo, porém não se ouvia mais os batimentos do coração. A princípio os investigadores imaginaram que a senhora havia morrido de morte natural, porém quando o corpo chegou até Victor ele percebeu um sintoma incomum, as mãos da velha estavam recheadas de pintas.

- Eu acredito que ela não tenha morrido de velhice, acho que foi envenenada, porém não me sinto seguro para falar sobre isso com os investigadores sem ter nenhuma pista concreta. - Com um olhar de angústia, ele fixa seus olhos no horizonte. - E a família não me permite abrir o corpo para examinar.

Me sinto nervosa mas num impulso, questiono.

- Você deixaria eu dá uma olhada? - As palavras saem um pouco tremidas. - Posso tentar solucionar o caso.

Victor ri brevemente.

- Pensei que estivesse brincando no dia da missa, mas pelo visto estava falando sério. - Me lança um olhar de estranheza. - Lá não é lugar para uma dama e também é proibido.

Se antes eu estava com receio, agora estava morrendo de raiva. "Não é lugar para uma dama?"

- Bom, se é assim que você pensa sobre as mulheres, vejo que não é muito diferente do resto da cidade. - Vou me levantando. - Foi bom te conhecer, doutor Victor.

Ele tenta me impedir, me segurando pelo vestido.

- Espere, me perdoe. Não foi adequado o que eu falei, mas achei que assim você desistiria dessa ideia. - Ele fala só piorando as coisas e percebe isso. - Eu admiro as mulheres e não penso que sejam inferiores, perdoe minhas falas ignorantes.

Prestes a dizer "Adeus", um pensamento me vem a mente. Nunca mais havia visto nenhuma aparição e essa provavelmente seria uma oportunidade única de ver se os meus "poderes" sumiram. E, caso ainda estejam comigo, poderia fazer algo de útil com eles.

Continuo fingindo que irei embora, apenas para ver Victor continuar implorando pela minha permanência. A verdade é que não tenho coragem de ir partir, mas estou adorando vê-lo implorar.

- Amanhã à noite, nos encontramos. Não terá muitas pessoas no necrotério. - Com um semblante de derrota, ele fixa seus olhos em mim aguardando uma resposta. - Se isso for o que verdadeiramente deseja.

Sorrio maliciosamente e ele se alegra, entendendo o sinal.


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⏰ Última atualização: Jun 03, 2020 ⏰

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