"Chegamos à ilha flutuante de Éolo, o guardião dos ventos, que é cercada por indestrutível muralha de bronze, e fomos recebidos em seu palácio, onde vive com seus doze filhos, desfrutando contínuos banquetes. Por um mês Éolo me hospedou em seu magnífico palácio, pois desejava saber sobre as batalhas em Troia e o retorno dos heróis. Contei tudo com detalhes e quando lhe disse que desejava partir, pedindo sua ajuda para o retorno, ele preparou um odre de couro, dentro do qual prendeu os ventos rugidores, e enviou Zéfiro para empurrar as velas de nossos barcos. Contudo, por nossa própria imprudência perdemos o rumo."
"Navegamos por nove dias e nove noites. No décimo dia, vimos nossa terra apontar no horizonte. Eu estava muito cansado, pois havia permanecido junto ao leme, e por isso adormeci. Os companheiros comentavam entre si o que haveria no odre que Éolo me entregara. Pensavam que era ouro e achavam que eu o vigiava para não dividir aquelas riquezas com eles. Enquanto eu dormia, abriram o odre e todos os ventos escaparam, formando uma terrível tempestade, que nos levou de volta à ilha de Éolo. Ele me perguntou por que eu havia retornado, pois havia me dado os recursos para alcançar o meu lar. Ao contar o que acontecera, Éolo ordenou que eu deixasse a ilha, bem depressa, pois não podia ajudar um mortal odiado pelos deuses. Saí de lá entre gemidos e lágrimas, sem esperança de novo auxílio."
"Segui viagem com o coração cheio de angústia. Os homens remavam abatidos pelo desânimo. Viajamos por seis dias e seis noites, sem descanso, até chegarmos à terra dos Lestrigões. Os barcos entraram em um porto cercado de altos rochedos. Somente o meu barco ficou ancorado fora do porto, de onde enviei alguns homens para buscar informações sobre a gente daquela terra. Próximo à cidade, eles encontraram uma jovem gigantesca, que pegava água em uma fonte. Ao perguntarem quem era o rei do lugar, ela apontou uma casa, de onde saiu uma mulher alta como uma montanha. Ela chamou o marido, que devorou um dos nossos companheiros, enquanto os outros corriam de volta para os barcos."
"O alarme foi dado e todos os Lestrigões subiram aos rochedos, de onde lançaram grandes pedras sobre os barcos, que se partiram em pedaços. Os homens foram fisgados, como se fossem peixes e devorados. Ao ver o que acontecia, cortei as amarras de meu barco, fugindo para alto mar. Prosseguimos viagem, tristes pelos mortos, mas felizes por estarmos vivos."
"Chegamos à ilha de Eéia, onde morava Circe, de belas tranças. Ancoramos o barco em uma praia e ali ficamos dois dias, remoendo nossas dores. Na manhã do terceiro dia, me armei com uma lança, uma espada, e saí em busca de um lugar alto, de onde pudesse observar melhor os arredores. Vi então uma coluna de fumaça elevando-se do palácio de Circe, em meio a um bosque de carvalhos. Voltei ao barco, pois tinha dúvidas sobre se deveria ir até lá para buscar informações. No caminho, encontrei um cervo imenso e o atravessei com minha lança."
"Passamos o dia comendo a carne da caça, bebendo e descansando. Aquela noite dormimos na areia e, ao amanhecer, contei aos meus homens sobre a fumaça que eu avistara. Os que foram sorteados para explorar o lugar partiram chorando, os corações angustiados. Lembravam o que havia acontecido na caverna do Ciclope e na terra dos Lestrigões."
"Encontraram o palácio de Circe, feito de pedras polidas, cercado de lobos e leões que ela havia enfeitiçado. Os animais eram mansos e nada fizeram contra meus companheiros. Tremendo de medo, eles avançaram em direção à entrada. Circe estava no tear, cantando enquanto tecia um belo manto. Ela os recebeu gentilmente e serviu uma bebida que os fez esquecer de sua pátria. Um dos homens havia se mantido afastado e não entrou no palácio. De longe, viu quando Circe os tocou com sua varinha, transformando a todos em porcos, e fugiu para nos contar o que havia presenciado."
Ao saber do acontecido, peguei minha espada e fui ao encontro de Circe. Estava próximo ao palácio quando o deus Hermes me surgiu na forma de um belo jovem e alertou-me dos perigos que eu corria: "Ela te dará uma mistura de drogas, mas não farão efeito, pois o que te darei para comer, vai te proteger. Quando Circe te tocar com sua varinha, deves ameaçá-la com a tua espada. Ela vai te chamar para a cama e tu aceitarás, mas antes, faça-a jurar que não se aproveitará de tua nudez para tirar tua força e virilidade".
"Hermes arrancou uma erva, que os deuses chamavam moli, e me deu para comer. Em seguida, o deus retirou-se para o Olimpo e eu segui para o palácio. Circe me recebeu e preparou a bebida mágica em uma taça de ouro. Quando acabei de beber, ela me tocou com sua varinha, mas nada aconteceu. Agi de acordo com as orientações de Hermes e exigi o juramento. Só depois disso subi ao seu leito."
"As escravas de Circe, que cuidavam das tarefas domésticas, aqueceram água e prepararam um banho. Elas massagearam o meu corpo com óleo e me convidaram para comer, mas eu me mantive imóvel. Quando Circe perguntou por que eu não me alimentava. Respondi que não provaria a comida, nem a bebida, antes que meus companheiros fossem libertos e eu pudesse contemplá-los com os meus olhos."
"Circe atravessou a sala com sua varinha na mão, soltou os porcos e fez com que voltassem a sua forma humana. Todos choravam, agradecidos. Então ela se aproximou de mim e falou: 'Filho de Laertes, da linhagem de Zeus, Odisseu de muitos ardis, deixa o teu barco em terra, guarda tuas armas em uma caverna e traz os teus companheiros para o palácio'. Assim fizemos, lamentando-nos e derramando muitas lágrimas."
"Ao voltarmos, vimos que Circe havia lavado todo o palácio. Meus companheiros foram banhados e massageados com azeite. Por fim, um rico banquete nos foi servido. Ela então se aproximou e disse: 'Odisseu, filho de Laertes, descendente de Zeus, chega de lamentos e lágrimas. Sei tudo o que suportastes no mar e em terra firme. Mas agora, devem comer e beber fartamente, até que recobrarem os sentimentos que os animava ao deixarem a pátria.' As palavras de Circe me reconfortaram. Fiquei ali, dia após dia, entre banquetes, vendo sucederem-se as estações."
"Depois de passarmos um ano na ilha, meus companheiros começaram a me perguntar se eu não pensava mais em retornar à pátria. Naquela noite, subi ao esplêndido leito de Circe e abracei os seus joelhos, pedindo que cumprisse a promessa de me enviar para casa. A deusa respondeu que, antes de voltar a Ítaca, eu precisava fazer uma viagem à morada de Hades, para consultar a sombra de Tirésias, o adivinho cego, único adivinho que conservara o seu dom após a morte."
"Sentei-me no leito e chorei. Senti que não queria mais viver e nem ver a luz do sol. Perguntei quem nos guiaria naquela viagem. Quem poderia nos guiar a um lugar onde nenhum homem havia chegado? Ela me respondeu: 'Odisseu, filho de Laertes, não deves te preocupar. Erga o mastro, abra as velas e senta-te na proa. O sopro do vento Bóreas conduzirá o teu barco. Depois de atravessares o oceano, encontrarás uma praia plana e os bosques sagrados de Perséfone, com álamos e salgueiros cujos frutos não vingam jamais. Deves ancorar o teu barco e seguir para a negra morada de Hades, onde os córregos que nascem nas águas da lagoa Estige confluem para o rio Aqueronte. No encontro desses rios há uma grande rocha. Nesse local, deves cavar um fosso para o sacrifício de um carneiro e de uma ovelha negra. Atraídas pelo sangue, as sombras de muitos mortos se aproximarão. Com tua espada, deves mantê-los afastados do sangue, até que tenhas interrogado Tirésias. Ele te dirá o caminho a seguir e por quanto tempo ficarás longe da pátria."'
"Reuni meus homens elhes contei o que precisávamos fazer antes de voltar à pátria. Todos choravamenquanto caminhavam para o barco. Circe havia levado para a embarcação umcordeiro e uma ovelha negra, mas não a vimos passar por nós. Quem poderia veruma divindade se ela não desejasse ser vista?