Canto 14 - Odisseu e o fiel porqueiro Eumeu

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Odisseu deixou o porto e seguiu pelos caminhos pedregosos que atravessavam o bosque. Procurava Eumeu, o porqueiro, e o encontrou sentado à porta da cabana, ao lado do pátio onde eram guardados os porcos, cercados por um muro alto de pedras. Com a aproximação de Odisseu, os cães correram em sua direção, latindo ameaçadoramente. O porqueiro acudiu o visitante, afastando os cães aos gritos e pedradas: "Meu velho, por pouco os cães não te estraçalham. E a culpa seria minha, que já tenho tantas preocupações. Todos os dias choro a ausência de meu amo. Cuido dos porcos para o banquete de outros, enquanto ele, se estiver vivo, vaga por terras estranhas. Mas vem comigo até a cabana, para que eu te alimente, enquanto me contas de onde vens."

Odisseu agradeceu a acolhida e o porqueiro lhe disse que jamais receberia mal a um hóspede enviado por Zeus. Em seguida, louvou a bondade de seu senhor: "Se ele aqui estivesse, teria me dado uma casa, uma gleba de terra e uma mulher bonita, presentes que um amo generoso dá aos que bem trabalham, mas ele está morto. Melhor teria sido se Helena e sua raça tivessem morrido em seu lugar. Foi por causa dela, pela honra de Agamenon, que meu amo partiu para lutar contra os troianos."

Assim dizendo, Eumeu foi até as pocilgas, matou dois leitões, cortou a carne em postas e colocou em espetos, para assar. Em seguida, sentou-se, misturou o vinho com água e convidou seu hóspede para juntar-se a ele. Enquanto comiam, reclamou dos pretendentes, contou o que acontecia na casa de seu amo e enumerou os bens de Odisseu: "São doze manadas de bois no continente, doze de carneiros e doze varas de porcos. Aqui nesta ponta da ilha, pastam onze grandes rebanhos de cabras. Todos os dias, nós enviamos a melhor cabra e o melhor porco aos pretendentes."

Odisseu comia e bebia em silêncio, ouvindo as palavras de Eumeu e maquinando como haveria de destruir os invasores de sua casa. Depois de se alimentar, perguntou ao porqueiro: "Amigo, a quem pertences? Quem é esse homem que te comprou? Disseste que ele pereceu por defender a honra de Agamenon. Como viajei muito, talvez o conheça."

O porqueiro respondeu que a esposa e o filho de seu senhor não acreditavam nas palavras de nenhum viajante, pois muitos haviam mentido, somente para serem bem tratados. "Ela os ouve, chora, e lhes dá alguma coisa. Eu, porém, acho que ele está morto, para meu infortúnio, pois onde encontraria um amo tão bom? Choro mais por meu amo do que pelos de minha família, porque sei que ele me amava mais do que aos outros."

Odisseu disse a Eumeu que ele não devia perder a esperança. Tinha a certeza de que seu amo voltaria, pronto para se vingar por todas as humilhações. Então o porqueiro disse que não queria se lembrar do passado, pois seu coração se apertava quando falava de seu amo, e completou: "Tomara que Odisseu regresse como tanto desejamos, mas é com Telêmaco que agora me preocupo. Partiu para Pilo, em busca de notícias do pai, e os pretendentes lhe armaram uma emboscada. Espero que consiga escapar. Agora, ancião, diga-me de onde vens e para onde vais. Onde vivem os teus pais? Como chegastes a Ítaca?"

Odisseu lhe respondeu que havia nascido em Creta, filho de um homem muito rico e poderoso. Quando o pai morreu, os herdeiros dividiram seus bem em um sorteio. Ele recebera uma casa e um pouco de dinheiro. Como não lhe interessavam as atividades de administração da casa e do campo, passou a conduzir guerreiros em naus ligeiras, rumo a terras estranhas, para saquear as cidades do litoral. E assim enriqueceu, mas depois de algum tempo, começaram as suas desgraças.

"Fui encarregado de conduzir as naus cretenses a Troia e durante nove anos ali combatemos. No décimo ano, depois de saquearmos a cidade de Príamo, voltamos à pátria. Fiquei um mês em casa, com minha mulher e meus filhos. Em seguida, porém, decidi reunir nove barcos, tripulação e partir rumo ao Egito. Apesar de minhas recomendações, assim que chegamos nessa terra, meus homens começaram a devastar os campos, a massacrar os homens e a roubar mulheres e crianças. Afinal, os homens das cidades próximas se reuniram para nos enfrentar, liderados pelo seu rei.

Meus companheiros fugiram em pânico, sem ânimo para a luta, e os que não foram mortos, acabaram escravizados. Pronto para morrer, atirei fora minhas armas, corri até o rei e, chorando, abracei seus joelhos. Ele me conduziu ao palácio, onde permaneci por sete anos e acumulei muita riqueza. No oitavo ano, apareceu um fenício, que me levou a sua pátria, onde permaneci como hóspede. Ao final de um ano, levou-me à Líbia, pois pensava me vender como escravo. Estávamos acima de Creta quando Zeus enviou nuvens sombrias e fez escurecer o mar. Estrondos e raios caíam sobre o barco, fazendo-o virar. Enquanto os homens rodopiavam entre as ondas, agarrei-me ao mastro, que flutuava próximo a mim, e nele vaguei por nove dias sobre o mar."

"Na décima noite cheguei à terra do rei Fídon, que me acolheu. Seu filho foi quem me encontrou e me levou ao palácio. Lá me falaram de Odisseu. O rei me mostrou as riquezas reunidas pelo herói e disse que ele já havia embarcado para voltar ao lar, mas antes consultaria um oráculo para saber se deveria voltar às claras, ou se era melhor ocultar-se, após tão longa ausência. Quanto a mim, ganhei do rei uma túnica, um manto, e embarquei de volta a minha pátria. No entanto, assim que nos afastamos do litoral, os marinheiros decidiram me vender como escravo. Tiraram minhas roupas e me cobriram com esses trapos. Ao avistarem Ítaca, resolveram comer e dormir na praia, deixando-me amarrado no barco. Com a ajuda dos deuses, consegui me soltar, fugi e me escondi entre a vegetação. O destino quer que eu viva mais."

O porqueiro Eumeu se comoveu com o relato, mas afirmou que não acreditava no que seu hóspede dissera sobre Odisseu. Ele havia deixado de acreditar nesses relatos desde que um homem chegou contando que encontrara Odisseu em Creta, ocupado em reparar os barcos, avariados por tempestades. Esse mesmo homem dissera que o rei voltaria no verão, ou no outono, carregado de riquezas. Mas isso jamais acontecera.

Odisseu respondeu que o porqueiro era muito desconfiado e fez uma aposta: "No dia em que Odisseu chegar ao palácio, me darás uma túnica, uma capa e a ida para minha terra. Se isso não acontecer, poderás mandar que me joguem de um rochedo." O porqueiro respondeu que jamais maltrataria um hóspede e o convidou para jantar com os outros pastores, que logo estariam de volta. À noite, sacrificaram um grande porco, oraram pelo retorno de Odisseu e ofertaram aos deuses parte da carne. Em seguida, assaram as coxas e o lombo, que dividiram entre si, deixando para o hóspede a melhor parte. Odisseu agradeceu as gentilezas do porqueiro e, após a refeição, foram se deitar.

Chovia sem parar. A noite terrível, sem lua, ficou gelada. Para testar o porqueiro, Odisseu falou, diante de todos: "Ah, se ainda fosse jovem! Se tivesse a força que tinha no dia em que estive de emboscada, com Odisseu e Menelau, junto às muralhas de Troia! O vento soprava gelado e a neve caía sobre nós. Eu havia me esquecido de levar o manto e estava congelando. Disse a Odisseu que morreria de frio e ele, depois de ordenar que eu ficasse em silêncio, disse para que todos os outros ouvissem: 'Tive um sonho. Como estamos longe das naus, alguém deverá ir até Agamenon e dizer que precisamos de reforços.' Um dos guerreiros retirou seu manto e se lançou a correr em direção às naus. Passei o resto da madrugada, até amanhecer, aquecido debaixo daquele manto. Se eu fosse jovem e forte, algum de vocês me daria o seu manto?"

O porqueiro Eumeu ofereceu ao hóspede um leito junto à lareira e o cobriu com seu manto. Depois, agasalhou-se com uma pele de cabra, armou-se com a espada, uma lança, e foi se deitar próximo aos porcos, na concavidade de uma grande pedra, ao abrigo do vento gelado.

Odisseia (898 a.C)Onde histórias criam vida. Descubra agora