"Quando nosso barco deixou a corrente do rio Oceano e chegou à ilha de Eéia, mandei meus companheiros buscarem o corpo de Elpenor, para cumprirmos os ritos fúnebres, assim que a divinal Aurora surgisse no céu. Circe nos levou pão, carne e vinho, avisando que devíamos nos alimentar, pois partiríamos no dia seguinte, de madrugada. Ao anoitecer, Circe se deitou ao meu lado e pediu que lhe contasse tudo o que havia acontecido na viagem. Então ela me indicou a rota que devíamos seguir e deu as informações necessárias que precisávamos para voltar em segurança."
"Circe contou que as Sereias seriam nossa primeira prova. Com o corpo de ave e cabeça de mulher, elas atraíam com seu canto os que navegavam próximo ao prado onde viviam, cercadas pelos ossos daqueles que devoravam. Quem se entregasse ao canto das Sereias, jamais retornaria ao lar para ser abraçado pela mulher e rever os filhos pequeninos. Ela disse que devíamos tampar os ouvidos com cera amolecida, para não ouvirmos seu canto. Mas se eu quisesse ouvi-las, devia pedir aos homens que me amarrassem fortemente ao mastro do navio. Quando as Sereias ficassem para trás, eu teria que escolher entre dois caminhos: de um lado se erguiam dois rochedos enormes, que ao se moverem, esmagam aves, barcos, e tudo o que tentar passar entre eles."
"Disse a deusa: 'Um desses rochedos, que de tão alto toca o céu, tem uma caverna. É para onde deves dirigir a tua nave. Lá vive a terrível Cila, um monstro de seis cabeças, com dentes mortais. Sobre a outra rocha, de tamanho bem menor, há uma figueira grande e frondosa. Ao pé do rochedo, está Caribde, que três vezes por dia, expele e absorve água do mar com um ruído espantoso. Não deves estar próximo a Caríbdes quando ela absorver a água. Por isso é melhor passares por Cila, onde perderás seis homens, mas poderás seguir em frente com os teus outros companheiros.'"
"Depois disso, a deusa de belas tranças disse que chegaríamos a uma ilha, onde pastam os grandes rebanhos de vacas e de ovelhas do deus Hélio, e nos avisou: 'Se não fizerem mal aos animais, chegarão a sua pátria. Mas se as reses forem maltratadas, só tu voltarás a tua casa, depois de perder o teu barco e os teus companheiros.'"
"A deusa assim falou e logo surgiu a Aurora em seu trono de ouro. Circe se retirou para o seu palácio, no interior da ilha, e eu voltei ao barco para preparar nossa partida. Os homens içaram a vela, soltaram as amarras da popa e levantaram espuma do mar com seus remos. Partimos afinal, com um vento propício, enviado por Circe. Contei aos homens o que a deusa havia me revelado e, algum tempo depois, nos aproximamos dos rochedos das Sereias. Com o calor do sol, amoleci cera de abelhas e coloquei nos ouvidos de meus companheiros. Em seguida, mandei que me amarrassem ao mastro do barco, pois queria ouvir o canto das Sereias sem o perigo de ser atraído por elas."
"Quando nosso barco rápido passava, movido pela força dos remos, as Sereias nos perceberam e, com sua voz harmoniosa, nos chamaram, dizendo que seu canto nos traria revelações. Com movimentos de cabeça, pedi aos homens para me soltarem, mas eles me prenderam ainda mais fortemente. Só ao nos afastarmos das Sereias que meus companheiros retiraram a cera dos ouvidos e me libertaram das cordas."
"Pouco depois, em meio à cerração, vi erguer-se uma assombrosa onda e ouvimos grande estrondo. Os remos voaram das mãos dos remadores e caíram na água, nos deixando à deriva. Correndo de um lado para o outro, eu tentava animar cada um de meus companheiros, dizendo que Zeus haveria de permitir nossa sobrevivência. Nada lhes contei sobre Cila e enquanto passávamos diante do penhasco, por mais que procurasse, não conseguia vê-la entre as pedras. Navegamos adiante, angustiados, atravessando o estreito. De um lado Cila, de outro, a terrível Caríbdes."
"Os homens estavam pálidos de terror, pois temiam ser tragados por Caríbdes. Nesse momento, as cabeças de Cila se lançaram dos rochedos, arrebatando seis dos meus homens. Eu os vi sendo içados em direção às pedras, enquanto gritavam o meu nome. De tudo o que vi, nos caminhos do mar, nada foi mais terrível. Depois de escapar das rochas, de Caríbdes e Cila, chegamos a uma ilha, onde pastavam vacas esplêndidas, de largas testas, e as numerosas ovelhas do deus Hélio. Lembrei-me dos conselhos de Tirésias e de Circe, e contei aos meus companheiros sobre o que ambos haviam dito: a ilha de Hélio devia ser evitada, pois ali nos aguardava uma terrível desgraça."
"Meus companheiros, no entanto, insistiram em aportar, para passarmos a noite em terra. Como estava só contra todos, concordei, mas exigi que jurassem: se encontrassem vacas ou ovelhas, teriam de deixá-las de lado e se alimentar com aquilo que Circe nos dera para a viagem. Eles juraram, cozinharam a refeição, choraram pelos companheiros mortos por Cila e adormeceram na praia."
"Próximo do amanhecer, Zeus, o que amontoa as nuvens, ergueu uma tempestade assustadora. Levamos o barco para uma gruta, morada de ninfas, e eu voltei a lembrar aos meus companheiros, para reforçar a ordem anterior, que deviam se servir do que tínhamos no barco, pois os animais da ilha eram de Hélio, o deus sol, aquele que tudo vê e tudo ouve."
"Durante todo o mês sopraram ventos desfavoráveis. Enquanto meus companheiros tiveram pão e vinho, pouparam as vacas, e quando acabaram todos os outros alimentos, começaram a buscar na caça e na pesca o que comer. Caminhei até uma fonte, onde orei, pedindo aos deuses para me mostrarem o caminho de volta, e eles derramaram sono sobre meus olhos. Enquanto isso, movidos pela fome, os homens haviam decidido sacrificar as vacas do deus. Ao voltar para o barco, senti o cheiro da carne assando e me apressei."
"Meus companheiros haviam matado as vacas mais gordas de Helio. Então eu os repreendi, mas sabia que tudo estava perdido e que não havia mais o que fazer. Durante seis dias eles se banquetearam e no sétimo dia Zeus enviou um vento mais brando e pudemos embarcar. Soube depois, por Calipso, que Helio havia ameaçado deixar de brilhar sobre o mundo se os meus companheiros não fossem castigados. Foi então que Zeus decidiu fulminar o meu barco."
"Abandonamos a ilha e começamos a navegar. Quando em volta de nós só havia a imensidão do mar, Zeus enviou uma nuvem negra que obscureceu as águas e uma grande tempestade se formou. A violência do vento quebrou o mastro, que caiu sobre o crânio do piloto e o matou. Seu corpo afundou no mar e sua alma se desprendeu de suas carnes e ossos. Outro raio, lançado sobre a quilha, fez com que o barco girasse sobre si mesmo. Meus companheiros foram arremessados às ondas e, assim, os deuses lhes negaram o regresso à pátria."
"Continuei no convés, andando de um lado para o outro, enquanto a violência das ondas desmanchava o barco. Juntei partes do mastro e da quilha e, sentado nessa jangada improvisada, me deixei levar pelas ondas. Por toda a noite vaguei sobre os abismos do mar. Quando o sol se ergueu, cheguei aos penhascos de Cila e da terrível Caríbdes, bem na hora em que o monstro terrível começava a sugar a água do mar."
"Dei um salto e me atirei à alta figueira, agarrando-me nela como um morcego. Fiquei ali, colado à árvore, até que o monstro devolveu o mastro e a quilha de meu barco. Então me soltei, caí na água com um grande fragor, e nadei até as madeiras do barco. Sentado sobre elas, remei com minhas próprias mãos. Zeus, pai dos homens e dos deuses, não permitiu que Cila me avistasse e, assim, escapei da morte."
"Por nove dias fui arrastado pelas ondas. No décimo dia, os deuses me fizeram chegar à ilha Ogigia, onde vive Calipso de belas tranças, a deusa terrível, de linguagem humana, que me recebeu em seu leito e cuidou de mim. Mas devo repetir essa narrativa? Ontem a contei em teu palácio e não gostaria de voltar ao mesmo assunto."