Capítulo 1: Mystiks

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Mesmo com todo esse ódio por aí, o amor ainda vence.

Acordei com uma sensação estranha, como de quem acaba de acordar de uma anestesia após uma cirurgia, olhei ao redor, definitivamente eu não estava em casa, ou em nenhum lugar que eu conhecia, as paredes eram escuras e altas, o teto estava disposto em um pé direito imenso e nele havia um candelabro simples com todas as velas acesas pendurado, não tinha janelas, e isso mais as cores escuras deixavam o ambiente quase sem iluminação, nem a lareira acesa bastava para clarear o quarto, eu estava em uma cama macia e gigante, coberta por um edredom de pêlos vermelhos, e com certeza a melhor cama em que já estive durante toda a minha vida.

-Ótimo, você acordou! Como você está, Rebecca?

Quem falava era o mesmo garoto de cabelos castanhos que me tinha feito dormir e que, até aquele momento, não havia notado a sua presença em uma cadeira próxima a lareira.

- Como você sabe meu nome?

- Eu sei muitas coisas sobre você Beck, coisas que nem você mesma sabe...

- O que é você?

- Meu nome é Gion.

Olhei para ele com um olhar aterrorizado, que ele deve ter percebido, pois disse:
- Eu não vou te machucar, ok? Nenhum de nós vamos. Desculpe por te hipnotizar, prometo que jamais farei novamente sem a sua permissão.

- O que é você?
Repeti de forma enfática.

Ele suspirou e refletiu por alguns segundos como se pensasse se revelasse a informação ou não.

- Sou um beltor.

Olhei para ele esperando uma explicação.

- Deixe-me ver, acredito que o nome mais próximo que vocês já deram para nós foi "vampiro".

Nesse momento, senti que meu coração ia explodir, estava pálida diante da possibilidade de vampiros serem reais, e de eu estar a poucos metros de um. Quando estava tonta e prestes a desmaiar, a porta pesada de madeira se abriu, me despertando da minha transe, e por ela entrou o outro garoto que havia me levado até aquele lugar. As palavras saíram da minha boca involuntariamente:
- Ele também?

Gion riu e disse:
- Não, Mark, na verdade, é um lucet, ou, como vocês chamariam, um lobisomem.

Estava praticamente sem ar, aquilo era muita informação para absorver.

- Consegue se levantar? - disse Mark com a voz suave.

- Não sei.

Gion se levantou e me ajudou a ficar em pé colocando meu braço por volta de suas costas, o gesto me fez tremer de pânico e uma lágrima de medo tomou conta de meus olhos.

Caminhamos então por um corredor largo com muitas janelas e pinturas de pessoas que eu não fazia ideia de quem eram, as paredes eram grossas e feitas de pedra, e, mesmo do interior, pela altura da construção (que percebi pela quantidade de escadas que descemos) e por sua estética, descobri que me encontrava em um castelo.

Chegamos a um cômodo semelhante a uma cozinha, como todos os outros, era pouco iluminado e rústico, e atrás de um gigantesco balcão de madeira, estava uma garota de beleza extraordinária, na verdade, a garota mais linda que eu já havia visto, era um pouco mais velha do que eu, tinha a pele negra e seus olhos eram igualmente negros, seu cabelo armado estava preso em um lindo coque, e seu corpo era envolto por curvas.

- É ela? Perguntou com um sorriso assim que me viu.

Mark afirmou com a cabeça e ela fez uma reverência (sim, uma reverência! O que significava aquilo?).

- Beck, essa é Val.
Mark nos apresentou.

- Ela é uma sereia? - perguntei encantada com sua beleza e realmente esperando uma resposta afirmativa, mas em vez disso ela riu e explicou que assim como Gion, ela também era uma beltor.

- Mas com o tempo você vai nos ver apenas como pessoas, e não com esses rótulos. - disse a beltor com um sorriso.

Aquilo foi a gota d'água, e o medo que eu estava sentindo se transformou em raiva.

- Com o tempo??? Eu não vou ficar aqui por muito mais tempo rodeada por monstros!

Gion que até então estava sorrindo adquiriu uma feição de ódio e em um tom de voz extremamente assustador disse:
- Monstros? Vocês adoram nos chamar disso, não é? Mas a verdade é que vocês são os verdadeiros monstros!

Houve um silêncio mortal por alguns segundos até que Mark finalmente o quebrou.

- Gion, temos que ir!

Assim, ambos saíram por uma porta que aparentemente dava passagem ao exterior do castelo. Fiquei tentada a correr, mas sabia que seria inútil tentar escapar com os três me olhando, assim fui deixada com Val.

- Acho que você precisa ouvir uma história.

Olhei cansada para ela tentando demonstrar minha exaustão com aquele gesto, mas ela ignorou.

- Não sei se os garotos te falaram mas nós estamos em Aye, é um país criado por nós mystiks, pessoas como eu, Gion e Mark, escondido dos humanos por magia, onde podemos viver sem precisar nos esconder, mas precisamos ir de vezes em vezes para o mundo de vocês para conseguir comida, e, em uma dessa idas, um beltor, com uns dez anos de idade, entrou em contato pela primeira vez com a dança, porque aqui, não temos profissões como vocês, sabe? E definitivamente não dançamos. O problema foi que a partir desse dia, esse menino adquiriu o sonho de se tornar um dançarino, mas ele não iria conseguir realizá-lo em Aye, então ele fugiu, e foi a pior decisão de sua vida, ele se passou por humano, mas mesmo assim sofreu preconceitos apenas por ser um garoto e ter o sonho de dançar, ele teve que estudar em uma escola de dança apenas para garotos, e imediatamente se destacou, era rápido, forte, não se machucava e conseguia permanecer no ar o tempo que quisesse. Infelizmente ele confiou nas pessoas erradas, e depois de muito pressionado para dizer qual era seu segredo, ele revelou sua verdadeira identidade para aqueles que julgava seus melhores amigos, e esses, consumidos pela inveja, avisaram seus pais, dizendo que ele era um monstro e que devia morrer, então eles deram um jeito nele.

- Ele morreu?

- Não, não é tão fácil assim matar um beltor, mas apesar de suas técnicas não serem fatais, nós sentimos a mesma dor que vocês. Ele tinha apenas dez anos e foi humilhado, chamado de monstro, teve seu coração empalado, tentaram o decapitar, e o afogaram em água benta, e talvez o pior de tudo, pois ele carrega a marca até hoje, queimaram seu peito com um ferro ardente em formato de cruz. Ele não morreu, mas uma parte dele nunca mais voltou à Aye. Esse menino era Gion.

Estava chocada com o que acabara de ouvir, e não consegui pensar em nenhuma resposta, então desviei do assunto perguntando aquilo que eu mais desejava saber:
- O que vocês querem comigo?

- Acho que você já tem informações demais por hoje, podemos te explicar com calma amanhã, tudo bem? Agora você precisa descansar. Venha, vou te acompanhar até o quarto.

Eu estava exausta, mas durante todo o caminho para o quarto, olhei ao redor buscando por formas de escapar daquele lugar. Uma das janelas estava aberta e logo acima dela havia um quadro, a distância até o chão era muito grande, mas se eu conseguisse algum tipo de corda, poderia amarrá-la no prego que segurava o quadro e chegar em segurança até o chão, eu precisava apenas ficar sozinha.

Quando chegamos ao quarto, fui direto para a cama, exultante com a ideia de finalmente poder me deitar, Val foi até o armário de madeira encostado em uma das paredes e o abriu, espiei por dentro do móvel e pude ver vários vestidos. Será que aquele quarto era dela? Ela se abaixou e tirou de dentro de um compartimento um livro, sentou-se na cadeira perto da lareira e começou a lê-lo.

Fiz um esforço tremendo para não cair no sono enquanto fingia que já havia adormecido para, talvez, Val deixar o quarto, e quando já estava perdendo as esperanças disso acontecer, ela finalmente me deixou sozinha para colocar em prática minha fuga.

Rebecca Evelyn- A MestiçaOnde histórias criam vida. Descubra agora