Capítulo 4: Vida em Asfales

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The world isn't always a kind place.
(O mundo não é sempre um lugar gentil)

Já se passava três semanas desde que eu resolvera ficar. Não tinha visto mais Val desde então, sentia saudades dela, o único momento que tivemos juntas me trouxe uma sensação de confiança, ela era uma daquelas pessoas que transmite uma energia positiva por onde passa, e que com uma única palavra te faz querer revelar todos os seus segredos. Acho que poderíamos nos tornar grandes amigas. Não tanto quanto com Renan contudo. Ah, Renan! Sentia sua falta... Ele era sempre o primeiro a saber tudo o que acontecia comigo, desde o que eu comi no café da manhã até meus encontros desastrosos com caras superficiais. Eu queria muito que ele estivesse por perto, eu precisava contar o que estava acontecendo e como eu estava me sentindo, ele sempre fazia eu me sentir melhor.

- Se concentre, Beck!

Mark me acordou de meus pensamentos. Estávamos em uma espécie de sala de treinamento e Mark estava me ensinando a (como ele dizia?) "ser forte". Era um treinamento muito pesado, ele me fazia acordar todo dia às cinco da matina e ficávamos até tarde da noite treinando. Ele me ensinava artes marciais, defesa pessoal e a usar armas como lanças, arco e flecha, espadas e pistolas também. Havia algo de diferente naquelas armas, eram feitas de materiais que eu nunca havia visto, as lanças eram transparentes, as flechas tinham a ponta incandescente com um fogo violeta que nunca apagava, as pistolas não eram compostas por balas, em vez disso, elas disparavam como que um jato invisível e silencioso mas que, segundo Mark, era fatal, e as espadas eram relativamente comuns, porém em cada uma delas havia desenhos e escrituras exóticas diferenciando-as.

- Você sabe o que significam?

- Não todas, aqui, as espadas não são feitas, elas simplesmente surgem quando precisamos delas, e apenas a pessoa para qual ela aparece consegue ler o que está escrito, normalmente são dicas vitais. Essa que você está empunhando apareceu para Val, logo apenas ela consegue ler, e assim como todos nós, nunca revela o que está escrito. Não se preocupe, um dia sua própria espada vai surgir.

Não via muito Gion ultimamente, fazíamos poucas pausas no treinamento, apenas para comer. Ou melhor, para eu comer, eles ficavam apenas observando, o que me deixava extremamente desconfortável.

- Vocês nunca comem?

- Não com tanta frequência que você, uma vez por mês já é suficiente para nós, mas claro, nós nos alimentamos de forma bem diferente...

Meu estômago ficava embrulhado só de pensar. Sentia medo deles ficarem com fome e esquecerem que sou uma amiga e me verem como uma presa.

Mas tirando isso, eles realmente eram ótimas companhias. Me encantavam todos os dias, era até difícil me concentrar ao ver Mark com seu corpo musculoso à mostra, normalmente ele usava regatas, mas quando transpirava demasiadamente ele as tirava, me fazendo perder totalmente o foco. Algo neles fazia eu me sentir desejada, e era um sentimento bastante recíproco, toda vez que Gion me sorria, eu derretia por dentro, e quando Mark me tocava tentando me ensinar movimentos de batalha, meu mundo todo estremecia.

Às vezes era até cômico o jeito como disputavam pela minha atenção, dizia que estava com frio e um trazia uma blusa enquanto o outro ligava a lareira, quando dizia que estava cansada, eles quase duelavam para decidir qual deles me acompanharia até o quarto, mas aquilo, apesar de excitante, muitas vezes me deixava irritada em como eles conseguiam ser imaturos. Apesar de tudo, não esperava um relacionamento com nenhum dos dois, afinal ainda não era amor de verdade, era apenas uma atração, assim como eles eram lendas para mim, eu também era uma lenda para eles, e acho que isso era mais atraente do que eu em si. Mas claro, se Renan estivesse aqui, ele iria me implorar para beijar ambos.

- No que você está pensando? Nunca te vi tão descocentrada!

Normalmente ele era gentil, mas durante os treinos pegava pesado, e seu tom de voz sempre se tornava mais agressivo quando eu estava em outro lugar.

- Sinto falta do meu amigo. Aquele que estava comigo quando enfiei uma chave de fenda em você, sabe?
Disse essa última frase rindo tentando aliviar a expressão séria que ele adquiriu quando disse o que me afligia.

- Beck, você sabe que tem assuntos mais importantes para tratar, essa é sua vida agora, e ela não permite distrações como a saudade.

- Ela não precisa sentir saudades.

Me virei assustada ao perceber Gion que estava atrás de mim, ele tinha um dom natural para se tornar imperceptível quando queria, então sempre que ele surgia assim de repente, me perguntava se ele também tinha a capacidade de se tornar invisível.

- E se nós o trouxéssemos para cá?

Quase explodi de felicidade com a ideia.

- Vocês fariam isso?

- Não! - interveio rapidamente Mark.

- Ele é humano, Gion! Você mais do que ninguém deveria saber do que eles são capazes!

- Renan não é assim! - gritei em defesa do meu amigo.

- Não podemos arriscar, Beck. Nunca nenhum humano descobriu a existência de Aye. Precisamos manter assim. Já temos uma guerra interna, não precisamos de mais uma com os humanos!

- Por que precisa haver uma guerra? - falei com voz de choro.

Houve um silêncio. Gion arriscou:
- Ele não precisa ser humano...

- Você quer tranformá-lo?

Mark já estava praticamente gritando

- Se ele e Beck concordarem...

- Não! Assunto encerrado!

Mark tinha essa mania de se achar o líder, e o pior era que Gion, e provavelmente Val também, não se opunham àquela atitude. Eu sabia que os lucets eram a raça mais privilegiada em Aye, será que mesmo dentro de Litaten esse preconceito existia?

O treino continuou sem mais nenhuma palavra e eu não via a hora de que ele acabasse. Parecia inútil aprender a desarmar alguém enquanto meu amigo estava lá desesperado comigo e havendo uma possiblidade de ele saber que estou bem. Eu sabia que todos em Litaten dependiam de mim, Mark fazia questão de deixar isso bem claro todos os dias, mas não eram aqueles treinamento incansáveis que iriam salvá-los, eu precisava descobrir meu dom, era por isso que estava ali, e a demora estava me matando.

Quando o treino finalmente acabou, fui para o meu quarto e quase tive um infarto ao abrir a porta e dar de cara com Gion.

- Você aceitaria? Transformar seu amigo em um beltor?

- Eu não sei. Estou desesperada para vê-lo e dizer que estou bem, sei como ele deve estar preocupado. Mas não o imagino matando alguém, sugar todo o sangue de uma pessoa, acho que ele não suportaria. Eu não suportaria.

Gion abaixou a cabeça e eu pude perceber como aquelas palavras o machucaram.

- Não quis te ofender. Sinto muito.

- Nem sempre foi assim, sabe? Quando vivíamos com os humanos, não precisávamos matá-los, eles se ofereciam e era como uma doação de sangue, um pouco de sangue de cada pessoa que se oferecia era o suficiente, não era algo assustador. Eu queria poder ter vivido nessa época, mas agora... Não podemos deixar que uma pessoa com provas de que vampiros são reais viva. E isso assombra meus dias, Beck. Todos os dias eu olho para essa cruz no meu peito e penso que eles estavam certos. Eu sou um monstro!

Vi que seus olhos se encheram de lágrimas. Não aguentei e o puxei para um abraço. Era a primeira vez que ficávamos tão próximos, podia sentir o coração acelerado batendo em seu peito musculoso e arrepiei ao sentir seu corpo quente envolvendo o meu ao retribuir o abraço. Com muito esforço, me afastei e disse:
- Mas Renan é muito diferente de mim, ele provavelmente vai achar um máximo toda essa história de se tornar um vampiro. Não custa nada perguntar. Pode confiar em mim, mesmo que a resposta seja negativa, ele nunca vai contar a ninguém sobre a existência de vocês.

Rebecca Evelyn- A MestiçaOnde histórias criam vida. Descubra agora