A praga da minha pele

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Por mais de três séculos como escravos nós éramos definidos como pretos sujos de cabelo ruim, legitimamente definidos como produtos.


A minha crença não prestava, as minhas danças não prestavam, as minhas músicas não prestavam, a minha língua materna não prestava, o meu nariz e lábios, aff, não prestavam jamais, as minhas roupas não prestavam de modo algum, eram trapos...


Sabe o que mais não prestava que mais me afectava? A minha pele, a minha pele, a minha pele ... sim! A minha pele ! 


O quê mais? O meu cabelo, o meu cabelo, o meu cabelo, sim... o meu cabelo!
Não rezava ao que eu acredito, aliás já não sei se acredito! 


Não dançava as minhas músicas, ruídos eram aos ouvidos dos nossos patrões.
Não falava os meus dialetos, palavrões soavam quando ouvidos por quem não falava.


Não gostava de detalhes meus do corpo como narinas e lábios, demasiado grossos, alguns detalhes não prestavam a menos que seja como objecto sexual.


Minhas roupas eram trapos, mas serviam para limpar o chão dos meus senhores, limpar os sapatos ...


Dizem que somos inferiores mas sei muito sobre os meus ancestrais, a minha mãe sempre foi de contar histórias sobre o que somos e fomos, apesar de não ter uma relação muito sólida connosco. Ainda assim os meus olhos já viram muitas histórias que talvez a minha boca nunca as poderá contar mas certamente as marcas no meu corpo contam toda a minha trajectória, tenho tatuagens e cicatrizes que deixam transparecer a minha rebeldia visivelmente.
Ser rebelde não é um mal de todo, se a rebeldia levar-me à morte pelo menos estarei livre, nunca me importei com as chicotadas nas costas mas sim com as correntes na alma, sinto que enquanto viva nunca conseguirei as libertar então consequentemente temos todos que carregar o peso delas até que a morte nos liberte, por isso prefiro a rebeldia, para que me leve a morte, de nada vale essa miserável vida. 


Sei que somos mbundu, a segunda  região que mais predomina as "nossas" terras, e por ser mbundu tenho quase sempre as bochechas vermelhas.
Às vezes esqueço do português apesar de incrivelmente falar "bem" a língua dos patrões mas de vez em quando  dou umas dicas em kimbundu quando não quero que os patrões percebam, e é aí que eles pintam as minhas bochechas. 


Sou filha sem pai e quase sem mãe porque está sempre servindo, tenho dois irmãos, o Kiluanje e a Ngueve. Minha mãe e a Ngueve são negras de pele retinta já eu e o Kiluanje não, o que me leva a crer que o nosso pai seja um dos patrões que ela já teve. 


Odiava ser tratada por mulata, eles faziam piada como se fôssemos aberrações, experiências falhadas da minha mãe com algum branco vagabundo que se atreveu a se sujar com ela. Mas a verdade é que o mais provável a acontecer é que ela tenha sido obrigada a se deitar com um dos seus patrões, era muito comum de acontecer, os chefes tiravam proveito das escravas, para além de limpar e varrer também serviam para eles de um bom objecto sexual ! Era apenas para isso que serviam as mulheres negras, limpavam bem também tinham um corpo bom para se aproveitar, se não tomavam as suas escravas tomavam as suas filhas, as suas irmãs ou esposas dos escravos. 


Mas também por que raios um escravo vai querer arranjar uma esposa? Atrevido! Não tinham esse direito a menos que o chefe seja um pouco "sensato" e os dê essa permissão mas a tua carne sempre será comida por eles, e cala-te se tens amor a vida, ou a morte, não importa!


Todavia aquilo fazia-nos sentirmo-nos sujos por saber que a nossa pele traduz que somos frutos de violações,  sim violações, não bastava violarem-nos as mentes também tomavam o nosso corpo, como eu e o Kiluanje éramos gêmeos era provável que isso acontecesse além do quê durante a nossa infância nunca recebemos o mesmo carinho ou fomos olhados do mesmo jeito que a Ngueve tanto que aos 14 anos fomos praticamente vendidos por ela. Sim, isso mesmo que você acabou de ler, fomos vendidos pela nossa própria mãe. 

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