O Imbondeiro

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Na minha terra tinham muitos mitos que muitas vezes geravam a rituais de adorações, entre eles tinha a do imbondeiro.
Chamada de árvore mãe, imbondeiro, embondeiro ou baobá, servia de refúgio de muitos escravos que lá se iam esconder.
Inspirado em diversas lendas e contos, músicas e poesias, rituais e abrigos, eram os imbondeiros. Acreditava-se por muitos que era uma árvore também amaldiçoada pois os seus ramos inclinados para baixo simbolizavam o castigo divino e por isso gerava a folhas e aos frutos secos.
Acreditava-se também que por viverem mais de seis mil anos eram mais velhos que a própria terra, uma vez que um morto é enterrado dentro de um imbondeiro a sua alma continuava viva enquanto o imbondeiro existir. Podia-se derrubar tudo menos eles, um imbondeiro é sagrado, eles decidiam quando morrer não se podiam ser derrubados.
Por que estou disso a falar? Porque depois do patrão atirar em mim decidiu zombar daquilo que muitos escravos acreditavam.
Vitoriosamente tomou conta do meu corpo e pendurou-lhe no tronco mais baixo da árvore, assim os outros veriam aonde seriam destinados caso tentassem ter a infeliz ideia que eu tive. "Infeliz? Quê isso Luena, não era infeliz coisa nenhuma, tinha pelo menos o que mais desejava que era ter a minha alma desacorrentada. Já podia por exemplo tomar conta da fortaleza e gritar o quão odiava aqueles homens, podia estar a jorrar sangue mas eram lágrimas em forma de sangue traduzindo a minha imensa alegria em estar livre."
Numa era em que a cor da pele pesava e media o nosso destino, ninguém dava tanta importância ao corpo, então para o patrão era só mais um trapo pendurado para aterrorizar os outros escravos e perceberem que o melhor caminho para a salvação era receberem o baptismo e serem convertidos, assim mudavam aqueles nomes medíocres e o comportamento repugnante, e talvez esse insano desejo de querer fugir e sede da liberdade. Nem todos os escravos tinham esse desejo, alguns aceitavam (depois de muito serem violados mentalmente) em receber o baptismo. Havia um cativo num edifício que os escravos eram direcionados e lá mandados, e antes de serem enviado aos seus destinatários eram baptizados em massa, esses cativos eram convertidos em cristianismo e lá recebiam uma nova identidade, a sua maioria era obrigada a cumprir porque não tinham outra saída, já lá estavam mesmo sendo mandados noutros destinos para fora do país.
Era meio irônico, a igreja pedia desculpas pelo comportamento desumano dos homens brancos mas eles continuavam a chicotear-nos! Eu não sei como aquele homem rezava e conseguiu pendurar-me com sangue caindo no meu corpo naquela árvore. Pelo menos nós temíamos aos nossos deuses e aquilo era sem sombra de dúvida um acto demoníaco.
Tinha um padre que ia em muitos musseques e fazendas que ensinou-me esse termo "demoníaco", desde então passei a usá-lo mentalmente para tudo quanto eu conceituava mal, e eu achava aqueles homens mãos, alguns homens meus também, porque vendiam homens como se vendiam porcos e eram da mesma pele, e outros como a Kieza que se deitava com eles em troca de alguns privilégios. Bem, na verdade não achava, não de todo, a Kieza era só uma mulher confusa que achava que aquele era o único jeito de se safar aos maus-tratos mas por engraçado que seja aos olhos daqueles homens sempre serás uma mulher de cor e isso nunca te dará realmente privilégios no verdadeiro sentido da palavra, ela era só uma mulher de cor que tinha um bom corpo portanto não levava tantos chicotes como os outros nem era tão acorrentada como nós , ninguém queria pegar num corpo com seios e nádegas cicatrizadas e manchadas de sangue. Então ela não, ela era a escrava sexual acima de todas as outras escravaturas.
Essa protecção dava-lhe um certo conforto de que estava a viver melhor do que nós apesar dela ainda servir outros trabalhos connosco não era sempre. Depois numa altura em que os diamantes, sisal, café, cana-de-açúcar, e outros produtos agrícolas destinados unicamente para a exportação, além do quê se desenvolvia a exploração dos mineiros do ferro, era melhor para ela viver daquilo do que ser submetida frequentemente na prática dessas actividades.
Agricultura, comércio e indústria, era isso que formentava-se e aquele era o jeito dela de fugir da exploração desses serviços. Penso que a Kieza estava alegre por este momento, vivia avisando-me que tinha de ser um pouco mais como ela e a ajudar quando não estivesse disponível para aquilo, era repugnante receber tais propostas, estava na flor dos 15 anos e não entendia como ela se explorava tanto daquele jeito, minha rebeldia ao menos me valorizava.
Não foi o tiro que me matou totalmente, eu ainda estava viva depois da bala perfurar o meu peito, estava viva porém fraca. Eu lembro- me do patrão aproximar-se com um sorriso gigante e arrastar-me até ao imbondeiro porque faltava pouco para lá chegar. E com um escadote de madeira chegou até ao tronco mais baixo da árvore e pendurou-me, aquilo sim tomou conta do meu fôlego todo, o oxigênio prendia-se com a corda no meu pescoço e por segundos o escuro por completo dominou os meus olhos, não me lembro de ver a tia Nzuzi nem a Kieza a chorarem, se atrevessem-se a fazê-lo tinham o mesmo destino bonito tive então, não derramaram nenhuma lágrima de tristeza.
O corpo ficou aí pendurado durante a semana toda até que caísse por si só, se sem lá estar pendurado acreditava-se que um corpo lá enterrado tinha a sua alma pendurada nos ramos da árvore, agora mais do que nunca tinha uma alma literalmente lá pendurada ! Quando o corpo caíu, tia Nzuzi dignamente fez um ritual de enterro e enterrou-me ao pé da árvore rapidamente para que o patrão não percebesse mas obviamente ele perguntou aonde estava o corpo quando reparou que ausente estava, ninguém respondeu então levaram todas cicatrizes novas nas costas mas desta vez em minha homenagem.
Apesar de tudo eu orgulhava-me daquelas cicatrizes nas costas conseguem imaginar? Para mim simbolizavam a minha resistência, e para eles resistência quer dizer rebeldia, então se rebeldia significa ter sede de liberdade muito obrigada eu serei uma eterna rebelde.
- Se até os cães recebem melhor tratamento do que um homem só pela cor da pele dele ser diferente os errados e rebeldes estavamos a ser nós?
Era uma pergunta que não me cansava de fazer ao padre Inácio mas ele só me dizia que tinha que me converter para que Deus perdoasse os meus pecados e finalmente descansasse em paz. Mas eu me perguntava sempre de quais pecados se tratava!
Querer fugir era considerado um pecado?
E aqueles homens não cometiam nenhum pecado?
Espera aí... Se aqueles homens se arrependessem nos últimos minutos depois de viverem nos chicoteiando estavam salvos? Íamos estar juntos no mesmo sítio como se nada tivesse acontecido? Mas que raio de justiça é essa?
Se eu encontrar e conseguir identificar um homem que maltratava uns dos meus irmãos lá podem ter a certeza de que na primeira oportunidade que tiver dou um soco na cara dele ou atiro uma pedra a distância. Não quero conviver com esses seres quando tiver a alma desacorrentada, como eu já tinha dito: serei uma eterna rebelde!

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