Colorismo, herança da era colonial

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Já se passou um mês e elas não recebiam notícias nenhuma sobre a minha "família". Quanto mais tempo se passava mais eu conversava com a Raquel e mais ela se esforçava para me explicar as coisas.
Ao passo que íamos conversando ela acreditava que realmente eu não era "daquele século" (no real sentido da palavra).
- Raquel, Raquel, Raquel! Tens nome de branca, mas as tuas irmãs não!Recebeste o baptismo por opção!?
- Tu és engraçada! Mas ouve, tudo que tu dizes é mesmo à sério? Não és maluca da cabeça?
- Porquê que eu ia mentir? Do que vale um homem que jura mentido em memória dos seus ancestrais?!
- Não sei, diz-me tu.
- De nada vale! Estarás a ser um homem sem palavra.
Tinha conquistado a confiança da Raquel e vice-versa, ela tirou finalmente da cabeça que eu sofria de algum distúrbio qualquer ou então que a queda tivesse sido tão forte que me afectou ao cérebro e eu fosse uma atriz presa num personagem.
A mãe, tia Luísa já não achava que eu era algum espírito que ela invocou mas que não tivesse mesmo memória e estava perdida. Perdida estava, embora achava que a casa me era familiar e por outra, a minha memória estava boa e eu mais do que elas não percebia o quê que ao certo se tinha passado e porquê que aí estava ou então como o tempo tinha passado, ao menos ao longo das semanas deu para que percebesse isso, que já não havia mais escravatura e o tempo tinha passado imenso, a Raquel mostrou-me imagens e vídeos para provar. Têm agora uma coisa mágica chamada internet que é mais esperta e mais rápida que todos! É só lá procurar todas as dúvidas que ele dá quase todas as respostas em fracções de segundos.
Para além da mãe, Raquel vivia também com uma irmã de 8 anos( a Lueji) e outra recém nascida(Kiame), tinha apenas semanas quando eu apareci e como a tia Luísa ocupavasse demasiado com ela não tinha muito tempo para procurar a minha "família", embora eu insistisse que não tinha, ela preocupava-se comigo e por aquela estranha razão não me deixava sair de lá.
A Raquel tinha aulas e quase lá passava todo o dia e eu ficava com a mãe dela a quem ajudava imenso. Naquela altura eles recebiam muitas visitas por causa da bebê inclusive naquele dia.
- Desculpa por não ter vindo antes Luísa, e já agora quem é a menina? (Perguntou a amiga da mãe que a tinha vindo visitar).
- Não, não faz mal.  É a Luena, e é uma prima.
Porquê que ela tinha respondido aquilo? Então ela não tinha a intenção de procurar a minha família? Será que já tirou aquilo da cabeça?
- ... A bebé é tão fofa, ahhh !
- Obrigada Amélia ( e sorriu).
- Olha para ela, também nasceu escurinha como as outras, não tens bom ventre Luísa (ria-se enquanto falava).
- Desculpa tia, bom ventre? (Intervi eu na conversa).
- Sim, bom ventre. As meninas receberam todas a pele dela e nenhum pouco do pai. (Respondeu a senhora direccionando para o ventre).
Eles tinham expressões como "bom ventre" para se referir a uma mãe que nasce filhos de pele clara, e quando não nasciam eles consideravam que o ventre da mãe não era bom. Por anos eu tive de aprender que negro não é "bom" e que branco era "bom" e eles ainda estavam a alimentar isso.
Mas tarde a Lueji chegou da escola com a Raquel e correu logo para me contar como foi o dia de hoje na escola. A Lueji estava entusiasmada porque foi a uma visita de estudo.
- Hoje o dia foi muito bom Luena,  passeamos muito com a professora e os meus colegas.
- Ah, e o que fizeram?
- Comemos, cantamos, vimos o Porto do mar, e fomos também na fortaleza de S.Miguel.
No começo fiquei surpresa que ela lá tinha ido e me estivesse a contar alegre e ainda voltou mas lembrei que já me tinham dito que a escravatura tinha acabado. Hoje crianças vão para lá, visitar até a Fortaleza de S. Miguel olhando para a vista que dá a baía de Luanda e sem saberem as sóbrias razões que levaram a construção daquela fortaleza. Desconheciam as razões do mesmo jeito que desconheciam que Zimbo era uma moeda naquela altura e hoje era um canal de TV.
Haviam túneis durante séculos, túneis subterrâneos que iam da fortaleza até à baía aonde os meus irmãos lá entravam numa viagem sem volta. E ela vem hoje cá me contar alegre que lá foi visitar e conseguiu voltar. Conseguem imaginar a confusão que se passava na minha cabeça naquele momento?
Imagino que não.
Enquanto isso, a Raquel me deu a notícia de que falou com a directora da escola dela e pediu para que assistisse com ela as aulas enquanto tentavam procurar algum parente meu, a directora aceitou e ia logo na manhã seguinte.
Ela estava muito entusiasmada, disse-me que finalmente teria alguém com quem falar lá (ao que parece ela não era uma pessoa de muitos amigos), fomos então para o quarto escolher o que usar no dia seguinte para vestir. Tínhamos quase o mesmo biótipo apesar dela ser um pouco maior, mas as roupas mais antigas serviam-me.
Entre tantas roupas idênticas as peças sofisticadas que os estrangeiros usavam só vi um traje, quando perguntei se podia usar ela respondeu-me que era exclusivo para o dia da Áfrika que se estava a aproximar.
- A propósito, desfaz esses carapitos que tens na cabeça.
- E porquê? Fiz ontem, ainda estão muito bonitos.
- Estás maluca? Não vais assim entrar, desfaz isso, tu tens um cabelo muito bonito, diferente do meu, tenho um produto que vai definir ainda mais os teus cachos.
Para mim naquele momento ela estava a falar chinês,  não entendi nem porquê que tinha de desfazer os meus carapitos que estavam novinhos e bonitinhos e nem o quê que eram produtos e cachos. E tão pouco entendi porquê que ela não gostava do cabelo, se já não tinha escravatura então já não tinha ninguém que a fizesse achar que o cabelo dela era feio certo? E porquê que ela achava que o meu era bonito e o dela não se somos as duas negras!? Se ela não gostava não trançava e pronto?
Essas pessoas são malucas! E ainda acham que eu que não batia bem da cabeça depois da queda.

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