Alma desacorrentada, corpo renascido

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- Raquel anda logo, olha eu acho que a múcua vai cair desta vez (gritava a sua mãe).
- Mas é claro, atirei uma pedra mesmo grande de longe, não viu mamã ?
- Se cair na tua cabeça pelo menos te tira esse egocentrismo todo ! (Riram-se as duas).
- ... Olha, caíu, apanha Raquel !
- Apanhei! Mamã olha essas escrituras no imbondeiro.
- Ah, sim! Parecem muito antigas, devem estar aí há anos, é kimbundu, não sei muito sobre kimbundu mas ao que percebi está escrito : Renasça Luena. (Gritou a mãe)
- E porquê que gritaste mamã? Eu estou próxima à ti.
- Para ver se o egocentrismo te sai da cabeça aos gritos. (Riram-se as duas outra vez).
Dentro de alguns segundos caiu dos ramos da árvore um corpo subitamente. E assim eu renasci.
- Meu Deus ! Caiu uma menina aí atrás, corre Raquel talvez ela se tenha magoado.
- ... Menina, menina, levanta! Menina, menina, acorda. (Gritava a mãe de Raquel enquanto sacudia a desconhecida).
- Mamã, talvez seja melhor chamarmos alguém para ajudar ou ligar para ambulância.
- Ah, não me faças rir, ambulância até chegar ela já estará no mínimo morta.
- No mínimo mamã?!
- Sim, na pior das hipóteses morremos também as duas. Anda, levanta, pega nos braços dela e me ajuda a levar ela até à casa. Vamos chamar a vizinha Ana, como ela é enfermeira deve saber o que fazer.
Quando à casa chegaram comecei então a acordar...
- Mamã, mamã, olha a moça está a acordar !
- Calma Raquel não grites para não assustar a menina, acalma-te. Menina, menina estás bem?!
Mas que raio estava a se passar, quem são essas pessoas?! Onde está a mãe Nzuzi e a Kieza?! Xe, não morri?!
- Quem são vocês? Onde está a mãe Nzuzi? É o patrão? Onde estou?! (Perguntei eu apavorada).
- Calma menina, tu caíste do imbondeiro, não deves estar ainda totalmente lúcida, não te agites.
- Ahm?! Qual imbondeiro?! Onde o patrão me tinha pendurado?
- Mas quem é o patrão de que falas?! É algum chefe de uma casa onde trabalhas?
- O meu patrão! Sim! O chefe a quem sirvo como escrava. Quem são vocês, são escravas novas dele? Lembro-me dele ter disparado contra mim.
- Mamã eu acho que essa moça é maluca. (Sussurrou a Raquel para a mãe).
- ... Também vocês jovens começam a se drogar muito cedo, às vezes dá nisso (respondeu a mãe para a Raquel também sussurrando).
- Menina calma, não estás a dizer coisa com coisa, que escravas que o quê não somos nenhumas escravas, mas respeito! Como é que te chamas, lembraste disto? De onde és e onde estão os teus pais ou responsáveis?!
- Awa... Quais meus pais?! Não tenho pai, não sei quem é o meu pai e a minha mãe se foi, embarcou com a minha irmã no último navio que se foi daqui junto com outros escravos faz uns meses!
- Ahm?!
- ... Eu sou a Luena.
- Xe! Como assim Luena?! (Interviu a mãe).
- Luena, Luena weee! Como é que vou te explicar o meu nome?! É Luena!
- Waweee, sai satanás! (Gritou a mãe se afastando da menina e puxando a filha).
- Mamã o que foi?
- Eu acho que essa menina é algum tipo de feitiçaria daquele imbondeiro e nós fizemos algum tipo de ritual (sussurrou a mãe para a Raquel).
- Não estou a entender mamã!
- Eu sabia que esses vizinhos eram estranhos e já ouvi muitas coisas sobre essa zona antes de nos mudarmos. Não te lembras quando gritei o que li naquele imbondeiro?! Estava lá o nome dessa menina, acho que invoquei algum tipo de espírito.
- Hum, mamã, espírito e nós tocamos assim? Deixa a moça, melhor mesmo é nós levarmos ela ao hospital, não parece estar bem e a vizinha Ana não está em casa.
- Fica aqui com os teus irmãos eu vou levar ela. Acende uma vela e começa a rezar.
Dentro do carro a senhora começou a rezar o caminho todo. Tinha mesmo por momentos idealizado que eu fosse algum tipo de espírito que ela tinha invocado quando ao pé do imbondeiro estava com a filha.
Não obstante, eu estava ainda a tentar perceber o que ao certo se passava. Eram pessoas muito limpas, e via uma quantidade e tantas de negros nas ruas da cidade totalmente desacorrentados, tinha a idéia de que talvez aquilo fosse um sonho ou então tinha mesmo morrido e estava no famoso paraíso de que o padre Inácio tanto falava onde teriamos paz dos patrões e a vida eterna sem correntes, chicotes e trabalho esforçado.
"Com que então o padre não é um aldrabão."

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