Somos servos da mente!

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- A tua mãe ingeriu muitos remédios e bebeu uma dose alta de álcool, ao que tudo indica ela tentou suicidar-se. Está livre agora de qualquer perigo mas vou recomendar-vos um bom psicólogo, parece um quadro sério de depressão (disse a doutora).
E foi aí então que ficamos a saber o que era depressão pós parto.  Aos olhos dos vizinhos era uma mãe maluca que não tinha amor aos filhos, aos olhos da família faltava-lhe Deus e estava a enlouquecer, para os amigos o marido lhe estava a fazer muita falta. Mas era só a tia Luísa, um ser humano como qualquer um com sentimentos que estava a passar por uma doença séria!
- Porquê que não me contaste mamã? Estavas a passar por imensas coisas sozinha esse tempo todo? Já não confias em mim? A Luena tinha razão!
- Não é isso Raquel, eu sou mãe e a minha obrigação é apenas ser vossa mãe.
- E isso te impede de ser humana?
-...
- Mamã, nós sempre vamos estar aqui para ti incondicionalmente. O meu pai e as outras pessoas nunca vão olhar para ti como nós te olhamos, como uma heroína, é isso que realmente refletes para nós.
Era uma mãe maluca ou egoísta? Não!  Era uma mãe humana...
Tentamos esconder os nossos sentimentos com palavras mas acabamos por nos esquecer que os nossos olhos falam... desataram as duas então a chorar e seguidamente rechearam-se e cansaram os seus braços em amplexos.
A descoberta daquilo fez a Raquel ter de amadurecer um pouco mais cedo, pois agora a situação era controversa, quem tinha de cuidar da mãe era ela agora mais do que nunca. O curioso é que a maior parte das visitas que a maior parte das visitas por parte familiar sempre diziam que o que se passava com a família era falta de Deus e que ela estava a ser egoísta porque não pensava nas filhas e principalmente na Lueji que tinha uma pequena deficiência num dos braços.  É fascinante como todos estavam preocupados em criticar mais do que a apoiar a tia Luísa, de facto sim existe o suicídio egoísta mas creio eu que não se tratava daquilo para aquele caso, porque ela tanto parou de pensar em si nos últimos anos que asfixiou com tantos problemas que tentava esconder das filhas!
A Lueji tinha sim uma deficiência num dos braços, mas a maioria das pessoas se preocupava em dizer a mãe que aquilo era uma praga da família ou uma espécie de feitiçaria.  Como essas pessoas conseguem "adorar" a Deus e falar que tudo se resumia em feitiçaria o tempo todo?!
Raquel, sentiu a necessidade de deixar de ir as aulas durante aquela semana toda e nós cuidavamos da casa para ela e certificavamo-nos que ela ia as consultas. Enquanto os dias passavam, mais colegas aderiam minha campanha de implementação de kimbundu na nossa escola e a minha idéia de manifestamos contra a direcção o uso das tranças.
Parecia que pelo menos um pouco de juízo estavam a começar todos a ter, todos menos o pai da Raquel, ainda ligava para casa insistindo que tinhamos lá de sair se não derrubava tudo.
Era um espaço realmente muito grande, com o imbondeiro e tudo dava até para construir lá mais uma casa.
As pessoas parecem mais desumanos do que humanas. Então a senhora estava a passar por uma difícil fase e o senhor só se interessava em tomar posse da casa que comprou? Onde está o juízo desse homem?
No sábado numa reunião com os colegas:
- ... Ok Luena, já falaste, mas verdade é que eu não concordo com essa idéia e pronto.
- Se tu não concordas, o que raios tu vieste cá fazer?
- Queria ouvir e ver onde ia dar isto, não é por mal mas, nós podemos ser expulsos de graça depois desse protesto que queres fazer. Certamente não seremos ouvidos, isso é mesmo assim. Quem não quer trabalho com o cabelo alisa e pronto, eu fiz isto e não tenho problemas... (dizia a Beatriz).
- Eu também acho( murmuravam algumas meninas).
- Ouçam! Eu não tenho nada contra vocês alisarem o cabelo, mas verdade é que quando vocês fazem isto estão a queimar parte das vossas raízes. Não vos posso exigir que entrem numa ditaduta de que negro só deve usar o cabelo crespo porque se não estaria a criar um novo ''padrão de beleza para  negros". Negros devem usar o cabelo como quiserem, desde que não o façam porque acham o vosso cabelo ruim.
- Mas o cabelo de algumas colegas é mesmo ruim( respondeu o Rui enquanto se ria), uns parecem palha-de-aço (acrescentou o Rui).
- O quê que você define como ruim? Ficavas feliz se eu te dissesse que ruim é a tua cara?
... silêncio na sala.
- Vocês parecem todos seres alienígenas falando ! Se não querem aderir a minha campanha não adiram seus idiotas, não adiram então e ficamos sem as aulas de kimbundu e sem as tranças, continuem a se achar feias sem maquiagem e sem produtos para adulterar o cabelo, continuem a se achar superior falando francês e inferior quem fala tchoqué ou umbundu, continuem a compararem-se uns aos outros com os bakongos e sulanos o que é estúpido porque isso não são regiões coisa alguma, idiotas! Se vocês não se amam pelo que são acham mesmo que estrangeiros hão de vos amar? Continuem lá com medo de protestar, idiotas ( retirei-me enfurecida ).
Alguns colegas vieram ter comigo chateados por os ter tratados por idiotas, inclusive a Beatriz que enfureceu-se e deu-me uma bofetada no rosto e acresceu :
- És muito armada em inteligente, a tua cor não é nada.
Aquilo foi o cúmulo! Eu sou do tempo que nem chicotes nas costas me calavam acham mesmo que só ia observar? Não, isto não é um livro para crianças! (brinco, na verdade também é).
Sorri para ela e devolvi-lhe a bofetada e não só, bati tanto nela que até as minhas mãos doíam. Violência gera a violência e é isso que ela gerou, não era aquele o meu objetivo mas há tempos que estava a morrer de vontade de bater logo aquela menina!
Entretanto o pai da Raquel continuava enfurecido, o senhor ameaçava derrubar a casa ou pôr fogo nela se não saíssemos.
Não foi só uma promessa, isso aconteceu mesmo !
Gasolina, gasolina e gasolina, em tudo o quanto é canto daquela casa, incluindo no jardim, e árvores até.
Numa noite quando ninguém ainda havia chegado ele decidiu pôr fogo na casa toda.
Nós chegamos bem à tempo da festa começar, tinha muita luz em todo o lado.
Um imbondeiro vivia até mais de seis mil anos, se lá o fosses enterrado, lá a alma a tinhas pendurada nos seus ramos, podia ser tudo derrubado mas nunca um imbondeiro podia ser derrubado, eles decidiam quando morrer... e naquele momento com aquele fogo, ele decidiu que ia morrer parte dele, os seus ramos secavam amargamente com a chama  e com isso caiam também as almas que lá tinham, inclusive a minha. E assim como alguém cai num sono, eu caí ao chão, num sono sem volta.

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