...continuação do capítulo anterior

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Acordei logo pela manhã muito cedo, já tinha a roupa vestida e também preparado a Lueji para a deixarmos também na escola dela. A Raquel demorou-se a levantar e muito mais para se preparar.
Não se fartava de trocar de roupas, o que não tinha eu percebido é porquê que ela tanto trocava de roupa se já tinha preparado uma na noite anterior ! No final ela acabou por não a usar.
Fomos então para a mesa comer alguma coisa enquanto esperavamos por ela. Eles tomavam leite, lembro-me que só os nobres tomavam, em pessoas de pele negra só via tomando leite quando uma mãe amamentava o seu bebê,  ou então mesmo alguns adultos em tempos mais difíceis de fome.
Raquel então estava pronta e fomos, conseguem imaginar como é que eu estava quando chegamos a rua? Estava eufórica, olhando para tudo o quanto é canto e perguntando sobre tudo, as pessoas espantavam-se e questionavam quem eu sou.
Quando chegamos à porta da escola fomos logo barradas pelo segurança de lá,  ele mexeu no meu cabelo e disse que estava a confiscar se era mesmo meu ou não,  ao que parece não eram permitidos naquela escola entrada de tranças postiças ou qualquer outro tipo de cabelo artificial.
- Ai, o senhor está a puxar o meu cabelo,  isso dói !
- É mesmo teu cabelo ou é peruca?
- Ahm? Peruca, o que é isso? Este cabelo é meu!
- Desculpa menina, tem razão, podes entrar, também és mesmo água de feijão,  vocês água de feijão têm muito cabelo, entra menina.
Água de feijão? O que é que ele quis dizer com aquilo?
Entramos então na escola mas notei que o rapaz que estava atrás de nós não tinha entrado.
- Raquel porquê que aquele rapaz não entrou connosco? Aquilo também é cabelo dele.
- Ahm, sim. Mas é justamente por isso, ele tem de cortar se não, não entra.
- Cortar? Mas porquê? É escravo?
- Claro que não, não é ! Mas não o deixarão entrar enquanto tiver o cabelo naquele tamanho.
- Mas o outro rapaz também tem e ele entrou connosco!
- Ahm, ele também é água de feijão como tu e o cabelo tem cachos.
Mas que raios significavam os cachos e ser água de feijão? Isso dava permissão as pessoas em entrar? Se sim não sabia ao certo mas percebi que naquela escola também eram malucos, obrigavam alguns rapazes a raparem o cabelo e dizem que já não há escravatura e não deixam as raparigas usarem tranças postiças sendo que a Raquel me tinha explicado antes que tranças postiças faziam parte da beleza das mulheres do país,  então aquela cultura era algo mal?
Mais tarde a Raquel explicou-me o que queria dizer água de feijão, era assim que eles chamavam a negros de pele mais clara e curiosamente aos de pele retinta eles usam expressões como "preto", "escuro" e "moreno" , perguntei se era certo chamar-lhes também por "filhos de mal ventre" ela disse logo que não então fiquei ainda mais confusa com aquilo, então dizem as mães que têm mal ventre e chamam aos filhos de morenos, escuros ou pretos?  Essa gente é maluca, eu não irei referir-me assim as pessoas!
Quando chegamos na sala faziam imenso barulho, mal se conseguia ouvir os meus pensamentos e tão pouco conseguia entender o que eles falavam um com os outros. Todos receberam-me calorosamente, acho que por ser nova naquele sítio conseguia atrair atenção dos olhos de todos, as meninas elogiavam tanto o meu cabelo e não paravam de olhar mas não mais do que os rapazes que mal conseguia pestanejar.
Nunca tinha sido antes tão elogiada na minha vida, aliás nunca tinha sido antes sequer elogiada! Elas também gostavam do meu cabelo como a Raquel.
Logo que começaram as aulas, não podia deixar de reparar que eles também tinham professores brancos,  tinham brancos em tudo o quanto é canto afinal na cidade,  não os vi só apenas no hospital, vi-los em mais outros lugares mas não tinham da mesma intensidade que tinham pessoas negras, e aí eles trabalhavam para elas, mas como sempre estavam sempre bem colocados e apresentados.
Na aula de história enquanto a professora explicava o tema, eu tentava entender aquele livro, era editado por portugueses! Levantei a mão interrompendo a explicação da professora sobre a aula que sinceramente pouco parecia que ela entendesse do tema que estava a dar, os alunos estavam todos tão desinteressados quanto ao tema, uns bocejando e outros até dormindo, ela não conseguia prender a atenção deles e tão pouco despertar-lhes algum tipo de interesse e ela falava sobre a independência do país ! Eu desconhecia algumas coisas e queria saber mais sobre como conseguiram finalmente deixar de viver aquilo que eu tinha vivido.
- Sim, menina...
- Luena, sou a Luena.
- Sim, diz-me, o que te inquieta?
- Então vocês aprendem a nossa história em livros narrados pelos portugueses e acham mesmo que isto vai transmitir a mesma frustração que nós sentimos durante séculos e dirão eles nos livros quantas vezes nos tentamos libertar?
- ...
A professora conteu-se em não responder e perguntou a turma se mais alguém tinha dúvidas, disse ela que ia esclarecer no final da aula mas parece que se "esqueceu" ou então não considerou que fosse uma dúvida.
Essas pessoas são estranhas. No recreio havia um grupo de pessoas reunidas e estavam a falar de religião mas pareciam não se estarem a entender. Falavam de Deus tal como o padre Inácio mas cada um parecia ter um conceito diferente de como as coisas são aos olhos Dele.
Na discussão:
- Eu não vou poder dar o meu sangue a minha mãe, sinto muito mas não posso !
- Tu és maluco, ela pode morrer e tu e a tua família serão responsáveis.
- Vocês têm os vossos rituais e águas milagrosas e ninguém interfere nisso, então deixem o outro em paz.
- Deixa-te disto, vou atirar-te uma lata de chouriço para fugires daqui.
Porquê que um homem ia fugir chouriço?
- Achas que tens muita piada Rui, mas não sou eu que  me chamo Rui Mateta. (Todos se riram).
Que coisa estranha, todos acreditavam em Deus mas estavam a discutir sobre as opiniões contrárias que tinham sobre regras nas igrejas. Aquelas pessoas idolatravam as doutrinas religiosas, só me lembrava do padre Inácio ensinar aos escravos sobre o amor que Deus tinha e como queria que nos amassemos uns aos outros, embora não acreditasse naquela conversa e achava tudo aquilo um grande lenga, lenga aprendi que não devia desrespeitar aos deuses ou crenças que os outros acreditavam e não entrava em discussões desrespeitosas com o padre Inácio só intervia às vezes com as minhas dúvidas sempre de maneira muito educada.
Notei também que os outros pararam e no final gozavam com o colega Rui por causa do sobrenome.
- Mas porquê que vocês estão a rir do outro? Ele tem um sobrenome bonito, não se deixou baptizar por completo pelos portugueses.( Intervi eu na conversa).
- Mas você mulata mesmo é para falar à toa? Parece que veio do mato ( e riram-se).
- Não te atrevas em me chamar de mulata ! Não sou tua escrava, não me trates por crias de cavalos !
Retirei-me então daí e fui ter com a Raquel. Ser chamada daquele jeito para mim era bastante ofensivo, se resmungava com chefes quando assim me chamavam não podia deixar que aquela miúda assim me chama-se.
Era um termo pejorativo, faz referência a mulas que são crias de cavalos ou éguas (que eram considerados nobres) com asnos ou jumentos (que eram considerados inferiores). Eu não era uma cria nem uma aberração para ser assim chamada quando expliquei a Raquel ela riu-se imenso mas alertou-me que não me devia meter com aquela miúda porque não era simpática.
Eu sou do tempo que Ngola era uma capital do império português acham mesmo que ia ter medo daquela miúda? Nunca na vida!
O colorismo é a discriminação racial que provém do racismo, geralmente praticada por pessoas da mesma raça em que o tom de pele define o modo como o indivíduo será tratado.
Ao decorrer daquela semana eu reparei a diferença de como eu era tratada de maneira diferente da Raquel pelas pessoas dependendo do local em que íamos as duas. Desejava voltar aos meus ancestrais para ver onde eles erraram.

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