Capítulo I.II: 28/08/1963 - Três letras

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28 de agosto de 1963, Washington, D.C.

Eu me recordo daquele dia... eu estava feliz, pois até mesmo brancos estavam lá! Além de Sandra e Sasha, as filhas gêmeas loiras e de olhos azuis, a própria reencarnação da "raça ariana" que Hitler há alguns anos atrás tentou vender ao mundo. As duas quando eram menores sempre se irritavam com o fato da polícia parar Mama quando ela as levava para passear, perguntando aonde a mulher as levaria e se era algum tipo de babá ou criada das duas.

Normalmente, Mama era levada à delegacia por responder coisas como: "Somente estou realizando meu sequestro afrodescendente norte-americano matutino, policial, se quiser, posso roubar as suas filhas também!" — isso aconteceu pelo menos quatro vezes neste ano, isso já estava comum, porém eu nunca irei me acostumar ao ver Mama chegar com sinais de agressão em seu corpo ou rosto, mas ela se orgulha... é o que nos diz... se orgulha de não recuar.

Icarus falou que iria ser aproximar mais da "área dos degraus", coisa que para mim era estranho já que ele deveria ter no mínimo 1,90 de altura e poderia ver o que quisesse de onde quisesse estar. Minha mãe, que estava sentada no chão, ao lado de minhas três irmãs permitiu e falou para que o mais velho levasse tanto Giuseppe quanto a mim com ele. Eu ouvi o suspiro de quem não queria ter ouvido à parte que veio após a permissão, porém não importava, eu estava ansioso! Eu finalmente ia ver o amigo do Tio Bob que ele tanto fala... mesmo que eu ainda não entendesse tão bem o inglês.

Giuseppe e eu tentávamos entrar de pouco em pouco naquela multidão, abrindo um caminho com nossos ombros e pés que nos impulsionavam a seguir em frente enquanto nosso vigia seguia logo atrás. Cantavam, aplaudiam, sorriam, apesar de tudo, ali se mantinha a esperança! Estar ali era diferente de estar somente vendo ou ouvindo, sinto as respirações de um sangue injustiçado.

Em minutos conseguíamos chegar, especificamente, a alguns metros logo à frente daquela grande piscina. Meus cabelos estavam amarrados e colocados dentro de um chapéu bege, deixando as salientes orelhas "de abano" bem visíveis.

Giuseppe carregava consigo uma placa acinzentada onde estava escrito: "Preto como a gente" em azul-escuro. Não demorava muito para que os gritos e vozes, que já planavam pelo local, se tornassem ainda mais altos e fortes. Eu era pardo, Icarus e Giuseppe eram "realmente" negros, mas como tio Bob sempre nos diz: "Vista a cor que quiser, mas não lamente usando o preto."

— Ali na frente, acho que vi o Tio Wilson. — Falou a voz desinteressada do nosso irmão mais velho.
Alegre, com meus olhos procurei naquele mar de vidas, pois que com tanta gente acumulada, se movendo e... respirando... seria difícil localizar a respiração específica que eu queria encontrar.

Eu havia o achado. Acenando e apertando a mão de várias pessoas enquanto andava: "Wilson Bob", como era conhecido, o homem que logo retribuía o meu olhar e abria seus braços alegre em nos ver. Ele era magro, alto, tendo cabelos de cacheados ao crespo.

— Icarus! Giuseppe! Capenero! — Gritou usando o apelido que ele costuma me chamar, uma junção de "capelli" (cabelo) com "nero"(preto/negro). Após alguns minutos, ele conseguia se aproximar de nós. — Já te falei que não gosto quando esconde seu cabelo assim!

— Mama queria que eu usasse esse chapéu novo e o cabelo não o deixava entrar. — Ele gargalhou e eu o acompanhei no ato, porém, logo comentou: "Sua mãe é tão cheia de frescuras, mas também não dá para contrariar uma irmã que veio da Itália só para impedir você de se meter em confusão, não é? Ela é tão lutadora nisso tudo quanto eu e você! A saudade também causa dor, que bom que estão aqui e fazendo o que é certo, seu pai se orgulharia de você".

"Pai."

Giuseppe entrava na conversa com o homem que logo elogiava barba do garoto. Eu iria abrir a boca para prosseguir o papo, quis contar como estava feliz de estar ali e como eu me sentia ansioso para ver o tal amigo que falaria no meio de todo o povo. Admito que talvez eu não seja o mais bem informado de tudo sobre os países, o mundo, a pele ou dele, mas o que me falaram e eu já li ou vi... sinto um respeito, uma admiração, era como um verdadeiro herói.

Mas meus lábios paravam de se mover.

Os gritos e aplausos se encerravam, todos desviam o olhar para o nome que era apresentado...

...Dr. Martin Luther King...

— Eu irei traduzir para você, não se preocupe Capenero. — Falou Wilson Bob, encerrando a conversa com Giuseppe. Eu concordei com a cabeça, mas eu também queria por conta própria tentar entender o máximo de palavras possíveis que sua intensa e confiante voz formava. Icarus fechava seus olhos.

"Eu tenho um sonho..."

Cada palavra, cada frase, cada pausa, possuía um peso tão grande que talvez eu nunca fosse capaz de levantar em minhas costas.

O discurso me levou a um transe e eu não conseguia entender tudo por conta própria, não me referindo apenas às palavras, já que logo depois eram reproduzidas pela boca do irmão de minha mãe, mas o motivo de que eu também não possa lutar a favor disso, sem que por vezes os próprios "irmãos" de dentro dessa luta me repreendam por eu não ser "verdadeiramente negro".

"Não se pode lutar de verdade, pelo que você não passa." — Era o que eu muito ouvia, mas talvez não estivessem totalmente errados. Em contraponto, Mama considera isso uma imbecilidade: "Para proteger algo que é um bem a todos não importa o local ou quem fala, contanto que não tome a palavra ou direito de ninguém e que seja falado: o bom, o certo, o sincero, o honesto, o justo e acima de tudo, o não hipócrita". Meu olhar ia do Dr. Martin Luther King até o Tio Wilson, por diversas vezes, como se houvesse uma linha imaginária que ligava um ao outro. Ele possuía um sonho, todos possuem um sonho... eu possuo algum sonho? Talvez bobos e pequenos sonhos. Porém, o dele era o que o de todos ali pudessem ser realizados.

A tradução gaguejava.

— "Eu tenho um sonho." — Pronunciou as palavras úmidas pelas lágrimas vindas diretas do coração do Tio Wilson, aquilo... eu era capaz de sentir. Eu me aproximei do homem e o toquei na mão direita e em seu braço esquerdo. Meu tio estava feliz.

O sonho de liberdade, o sonho de ser igual, o sonho que poderá se tornar realidade. A partir do final, eu já fui capaz de entender melhor... e entre os sonhos que o homem tinha... eu repeti com o mover dos meus lábios traduzindo para o meu coração:

— "Com nossa fé... nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança." — A linha não mais imaginária e com toda certeza, sentimental e espiritual que ligava Wilson Bob a Luther King, também ligava os mais de 200.000 humanos que estavam ali, e se eles permitissem... a mim também.

O céu parecia tão mais próximo de mim naquela época.

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