"Algumas coisas marcam, e, às vezes, o tempo não é capaz de apagar as nossas amargas lembranças.
Mateus Barcelos.".
MATEUS
Segunda metade da década de 90. Aquela talvez tenha sido a maior tragédia da história recente do Rio de Janeiro. O dia virou noite de repente, prenúncio do caos que ainda estava por vir. Eu tinha apenas 6 anos de idade, mas me lembro de tudo com requinte de detalhes.
E nem tem como ser diferente, pois, além de ter sido realmente uma tragédia, até os dias de hoje não sou fã de tempestades. Lembro-me que fiquei arrepiado, com taquicardia quando as janelas do hospital começaram a chacoalhar, quando os primeiros trovões rugiram no céu carioca. O vento, aos poucos, demonstrava que não estava para brincadeira, que a coisa seria realmente séria, preocupante. E foi mesmo!
— Dê tchau para seu avô — ordenou papai, olhando com autoridade para mim. — Agiliza, vai cair o maior pé d'água e nós temos que voltar logo para casa.
— Mas, pai...
— Anda logo, cara — Ricardo puxou minha orelha esquerda. — Temos um longo caminho até Ipanema, quero chegar em casa antes da chuva.
— Tchau, vô — chateado, tentei abraçar Seu Ulisses, mas como não consegui, deitei o braço por cima da barriga dele. — Você tem que melhorar logo pra jogar bola comigo.
— O vovô está ansioso para brincar com você, meu lindo — carinhoso como sempre, o velhinho afagou meus cabelos muito escuros. — Seja bonzinho com o papai, combinado?
— Eu sou bonzinho, ele é que não tem paciência comigo!
— Vamos logo, Mateus — papai começou a me puxar pelo braço. — E fique de bico calado, senão eu vou mesmo perder a paciência com você.
— Mas eu nem falei nada!
— E não é para falar mesmo — ele continuou a me puxar. — Cuide-se, pai. Eu volto mais tarde para passar a noite com você.
— Trate o menino bem, Ricardo — exigiu Seu Ulisses. — Não se esqueça que nós temos um trato.
— Você vai voltar para dormir com o vô? — perguntei, olhando para o rosto barbudo de Ricardo com devoção. — Eu posso vir também, pai?
— Nem fodendo — ele soltou uma risada debochada. — Eu nem queria ter vindo, só fiz isso para você parar de encher o saco.
Papai não gosta de mim.
De mãos dadas com ele, olhei em todas as direções e prestei atenção em tudo enquanto caminhávamos para o estacionamento. Tive anseios de fazer muitas perguntas, afinal, àquela época eu era movido pela curiosidade, contudo achei melhor ficar na minha. Eu sabia que Ricardo não tinha paciência, então preferi o silêncio, pelo menos até o momento em que entramos no carro.
— Papai? — chamei baixinho, rezando para ele não brigar comigo.
— O que você quer? — colocando o cinto, Ricardo ligou o motor e pisou no acelerador.
— Por que o vovô operou o coração? — ergui a cabeça para fitá-lo.
— Porque o coração dele era fraco e precisou ser remendado — respondeu ele, o rosto meio carrancudo.
— Caraca! — fiquei surpreso, espantado. — E o coração do vô foi remendado em uma máquina de costura igual à da vó Margarida?
— Claro que não, né, moleque? — Ricardo riu. — Que idiotice!
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Marcas do Passado: Segredos do Coração - (EM DEGUSTAÇÃO)
RomanceSe durante a infância Mateus Barcelos era considerado dócil, carismático e deveras inteligente, a partir da adolescência seus rótulos mudaram para inconsequente, rebelde e mal-educado. Escravo de futilidades e dono de um temperamento por vezes gross...