Carta n°6 - Um Mundo só meu.

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  Acordei com o som dos pássaros. A correnteza não foi piedosa com meus pecados. O som constante da água faz com que eu me lembre de tudo o que aconteceu. Aos poucos, lava e só leva tudo para longe. Não faz desaparecer. O que eu fiz, foi feito e pronto. Era tudo tão improvável, inconstante, falso, vazio, fútil. Cansei-me. Cansei-me dos sorrisos amarelados, das selfies com pessoas desinteressantes, de viver a vida através de um visor de celular. Nunca precisei disso para mim. O mundo morreu, aos poucos.

Acho-me como um sobrevivente, em uma cabana de troncos mortos ao lado de um lago corrente. Estou cercado de árvores e plantas que desconheço, algumas dão frutos outras não, mas o que importa é que nos damos bem. Elas lá e eu aqui. As vezes sinto que elas ficam me olhando, me vigiando como se soubessem que faço parte do inimigo. Sou um vírus escondido, um soldado infiltrado que acaba com a natureza. Elas sabem disso e ficam me vigiando. As vezes em um farfalhar das folhas acho que elas estão tentando me assustar.

Talvez o isolamento do resto do mundo esteja me deixando louco. Ou talvez também esteja me curando de uma loucura que sempre vivi. Talvez eu esteja voltando a ter controle de minha própria sanidade. Ontem eu vi um pássaro se assustar com um outro ao se aproximar de forma mais sorrateira sobre um galho morto que fica uns 4 metros de minha nova morada. Eu ri. Fazia tempo que isso não acontecia. Olhei para os lados e não havia ninguém para compartilhar isso. Estava tudo bem. Talvez o mundo, Deus, universo ou seja lá o que for preparou aquele pequeno momento para mim. Não precisava de mais alguém para ser espectador daquele momento. Ao mesmo tempo no mundo havia milhões ou talvez até infinitas coisas acontecendo para serem assistidas.

O isolamento te faz ver o quanto você não é importante, o quanto você é perfeitamente substituível e te faz lembrar que você perece com o tempo. Depois disso a terra te engole e pessoalmente estou passando a acreditar que é a partir daí que as coisas realmente passam a acontecer. Este plano, este mundo, não me impressiona mais. Sequer irei entrar em questões pífias e repetitivas se eu deveria ter tido filhos, ou me casado para sentir coisas que que poderiam me impressionar. Acho que só seria mais uma prisão. Como um homem completamente incomodado por sentimentos alheios como eu iria conseguir conviver com a eterna obrigação de outros seres humanos de diferentes pensamentos sob o mesmo teto? A idéia de uma família me assusta, me irrita, me enoja. De qualquer forma ainda sinto saudades da carne assada de minha avó paterna.

Pessoalmente (e o que não é pessoal neste fim de mundo que estou ou talvez o começo dele não sei) não sinto falta de ninguém. Quando comecei o plano de minha cura, até passou pela minha cabeça trazer um cão comigo. No fim das contas não deu tempo, com assassinos de aluguel atrás de mim com gente querendo saber onde eu havia escondido o dinheiro e interrogando todas as pessoas que enganei para benefício próprio, não era uma boa continuar na cidade. Não era interessante ter outros seres humanos por perto. Sem contar que acredito que seria uma tortura para o pobre animal ter que conviver comigo, que não estou completamente são. Acho que ele morreria de tédio. Você, se achou minhas cartas escritas a mão provavelmente junto ao meu cadáver, já deve estar dormindo neste momento. Bons sonhos de qualquer forma e procure não acordar. Tenho certeza que aí é melhor que aqui. Ou se você ver uma cabana em seus sonhos, bata na porta e entre. Aí a gente continua esse bate papo. Talvez você esteja sonhando, talvez eu seja seu sonho, talvez a gente é a mesma pessoa e você se lembre que quem escreveu tudo isso, foi você um dia.

A minha parcial sobriedade (meu estoque está na metade ainda) faz-me ver o mundo real. Adivinha só: é uma merda. Ontem a noite pensei em escrever, mas estava triste. Estava tentando sobreviver. Fiquei deitado no meu saco de dormir torcendo em ouvir o barulho de tudo explodindo lá longe. De tudo acabando de forma hollywoodiana como em um filme de zumbis. Torci para ser o último ser humano do mundo. Apesar de estar pensando em ter meus últimos dias aqui, sinto que seria extremamente divertido voltar e ver que o ser humano se extinguiu e deu paz para o planeta se recuperar. Ver carros revirados, tudo ainda meio em chamas, cadáveres cá e lá, algumas coisas ainda em chamas. Ver que o único som que escuto são de meus passos e saber que este é o único som que será emitido de um ser humano. O último ser humano. Sentir o silêncio absoluto que me dá a mais pura verdade. Bem, pelo menos a minha. Já imaginou. Ter um planeta só para você? Ou mais sabiamente falando, ser do planeta inteiro?

O ser humano se tornou o verdadeiro câncer deste planeta e não serão ongs bancadas por empresários ricos (como já trabalhei para alguns) que irá resolver tudo. O mundo não tem salvação, não pela mão dos homens. É sim, tarde demais. Os seres humanos já são esses zumbis hipnotizados pelos próprios egos que se expõem em vitrines ao vivo com a ajuda de aplicativos de celulares de última geração. Pensando assim, realmente, se não for para ser o último ser humano do planeta, acho que vou ficar por aqui. Acho que se eu ver mais alguém vagando por aí, credo, só de pensar me embrulha o estômago. Prefiro continuar em minhas fantasias egoístas de que quero ser o último vírus da terra e sobreviver na mesma até o dia em que ela vagarosamente engolir meu corpo. Depois disso, como já disse, é que tudo realmente começa a acontecer. Ansioso para minha passagem a este novo e desconhecido plano.   

As cartas encontradas de Rogério FonsecaOnde histórias criam vida. Descubra agora