Carta n°9 - Espelho

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                Nunca me arrependi do que fiz até hoje. Sei que prejudiquei muita gente e a reclusão do convívio social me faz pensar que na realidade deveria ter indo ainda mais a fundo. O ser humano não é digno do ar que respira. Aposto que somente sou lembrado porque os prejudiquei. O que move o ser humano é o ódio. Vi, convivi e experimentei. É um fato. A eterna vontade de ter poder em todas as situações, em tudo ser do seu absoluto jeito, ficar tentando alimentar um ego próprio insaciável e assim tentar fazer-se importante em um meio social aonde no fundo não passa de mais um ser anonimamente ilustre.

                Quando escuto o canto dos pássaros pela manhã, fazendo um dueto com o som da correnteza do riacho que passa ao lado da cabana, lembro-me de que existe sim a perfeição. Aquele som repetitivo, o caminho que a água trilha, o espaço de ar por onde o canto ecoa. Tudo tem um sentido, um destino próprio e primordial para o pleno funcionamento natural da vida. O ser humano não. O ser humano interfere, assusta e estraga tudo.

                 Sinceramente não penso em sair daqui. Acredito (até por tudo que eu fiz), que sair daqui seria a minha sentença de morte. Seria suicídio. Muito me espanta que ainda ninguém me encontrou. Ontem estava tomando café sentado em um tronco de árvore morto a uns 30 metros de distância da minha cabana. Pensei ter ouvido passos, um dado momento, achei que tinha alguém me observando. De dentro do casaco grosso de lã preto de frio, que eu estava vestindo naquela manhã, saquei o revólver que Josué havia conseguido para mim antes de meu desaparecimento. Diga-se de passagem o item mais desnecessário da viagem, partindo do princípio que pretendo morrer aqui, até porque se alguém conseguir me localizar para afrontar minha vida, o destino seria o mesmo. Rodeei a área com uma espécie de excitação, quase sexual. Não sei se era um pico de adrenalina, coisa que não tinha a muito tempo, ou se realmente era mais uma consequência de minha doença. Não achei ninguém, não havia nada que pudesse dar fim a minha vida naquele momento. Me senti desapontado, triste. Até a hora que meus olhos fitaram o revólver preto em minha mão. Não adiantava. Eu não fazia o tipo suicida.

                 É no mínimo interessante viver aqui. Sabe aquela sensação que temos em nosso período infantil de que quando se cobre com o cobertor por completo se está protegido de todos os males físicos e místicos do mundo? É mais ou menos que me sinto nessa velha cabana. Inclusive em momentos de paranoia como o que citei acima. É como se este fosse o meu espaço, meu mundo. Aqui não sofro nenhum risco de absorver personalidade, aprender coisas com outra pessoa, de ouvir merda.

                 Creio que não sinto falta de alguém, mas sim curiosidade de saber como outros seres humanos estão levando suas vidas neste exato momento. Inclusive você, que está lendo essa carta! Parou para pensar o que as pessoas que te são mais importantes neste planeta estão fazendo agora? O que elas gostam de comer, beber, ouvir, como elas transam. O que elas pensam da vida e ainda na cancerígena cultura socialmente imposta, o que elas acham de você? Vou mais além, qual foi a última vez que realmente as ouviu e não só esperou ansiosamente a vez para falar de si mesmo? Acho que foi isso que me deixou doente. Sinceramente, sua vida não me é nada interessante, mas espero que esteja lendo essa carta a tempo de não ter se tornado um completo imbecil assim como eu fiz. Este tipo de coisa mata e faz matar também. Acredite, sei do que estou falando. Uma das piores mortes possíveis é aquela que no final de tudo você ainda respira. Mesmo isolado do resto do mundo em uma cabana de troncos seus pensamentos são os mais cruéis julgadores que possa ter. Você é seu réu, promotor, juiz e condenação. Sim, eu sei, abri mão de ser meu advogado de defesa.

                 O mesmo riacho que já citei, me serve incontáveis vezes ao dia como espelho. Passo bastante tempo lá me olhando. Não vejo nada. Apenas um espectro ambulante alimentado de convicções que achavam que lhe eram benéficas. Ainda vazio. Nunca me arrependi do que fiz até hoje.           

As cartas encontradas de Rogério FonsecaOnde histórias criam vida. Descubra agora