Carta n°7 - Cala-te

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          O gole de vodca descendo pela minha garganta era um anjo da guarda líquido e ardente que me abençoava enquanto deixava o mundo um pouco mais suportável para qualquer coisa que iria acontecer na sala de reuniões. Acho que eu comecei a perceber que estava doente naquele momento. Deitado sem sapatos no preto sofá de couro que tinha em minha sala, os dedos médio e indicador da mão esquerda seguravam o cigarro acesso que auxiliava esse mesmo anjo.

          Acho que nunca comentei como tudo começou. Sinceramente acho que fora naquele momento que vi que algo de muito errado estava se passando comigo. O que aconteceria dentro de alguns minutos a seguir do citado no parágrafo anterior, ilustram com maestria a gota d'água que me motivaram a fazer o que fiz e o que me trouxe para o isolamento nessa cabana de troncos.

          Apaguei o cigarro, calcei os sapatos como se um cavaleiro veste sua armadura antes de ir para uma guerra da qual sabe que não viria vivo. Obviamente, nessa exagerada analogia, este mesmo soldado lutava pelo que acreditava e tinha algo a perder. Nestes dois pontos, não tínhamos absolutamente nada em comum. Atravessei o corredor sem olhar para nenhum de meus subordinados. O sorriso puxa saco, o aceno com a mão, tudo iria apenas adiantar o asco de tudo e todos que eu já vinha carregando a alguns meses. Sentimentos de alegria da qual meu julgamento provavelmente distorcido achavam falsos me causavam uma irritação e mal humor que eram comprometedores a tornar o dia (na realidade assim como todos vinham sendo) ainda pior. A cada passo que me aproximava daquelas duas portas de mogno incrustradas de forma rústica com imagens de plantas das quais sequer me importava, faziam jus ao mesmo desinteresse que eu tinha com as pessoas que teria que dar satisfações.

          Como nesse ponto, você já tem meu respeito, por ter paciência de ler esses meus textos (me recuso a chamar isso de memórias, estas, são escritas por pessoas importantes), irei poupá-lo de reviver detalhe a detalhe daquela reunião, até porque foi tudo extremamente pífio, vazio. Na realidade tão insignificante que o único motivo de eu estar compartilhando isso com você é porque já bebi mais uma garrafa de vodca e estou completamente entediado. Não me pergunte exatamente o porquê estou te contando isso, mas acho que terá alguma relevância no fim das contas. Dizem alguns filósofos que quase tudo tem, não é? Fato que de repente, me via sentado ao lado do proprietário da empresa e diante de diversos diretores de outras unidades, investidores midiáticos ou parceiros comerciais. Todos ali, na realidade, ocupar minha cadeira. Para ser completamente sincero, lembro-me pouco do que aconteceu. Entretanto algo foi inesquecível.

          Depois de ter feito meu trabalho, que basicamente consistia em repetir e apresentar informações numéricas sobre economia de compras, desempenho de vendedores, lucratividade mensal e semestral mesmo todos já estarem cientes pois um programa de computador o fazia de forma muito mais breve e interessante do que eu, vi o dono da empresa estendo o pescoço e os braços para dar a palavra para outros diretores. Fechei a pasta de papel que continha os papéis com as informações e suspirei em um discreto alívio. Minha parte naquele circo já havia passado e era hora de outro palhaço se apresentar para a plateia de um homem só.

          Elogios, resenhas, elogios, mentiras ensaiadas e adivinha? Mais elogios. Todos queriam lugar ao sol (ou seja, meu assento) e era visível que ninguém havia parado para ouvir uma palavra sequer do que outro colega havia falado. Você tem alguma memória de infância, em alguma fazenda ou sítio que deve ter visitado, de quando é jogado milho para galinhas? Repare de que na maioria das vezes elas não se importam tanto com suas porções, ou as atiradas em seu espaço e sim em atacar a outra por inconscientemente acharem que elas ganharam mais milho. Substitua milho por pequenos espaços para falarem coisas até sem sentido no contexto da reunião, substitua galinhas por diretores comerciais, substitua o fazendeiro pelo dono da empresa (que durante esse tempo aumentava seus sorriso de dentes amarelos e rolava um charuto fedorento de forma quase obscena pela boca com ajuda dos dedos) e substitua um galho velho, seco, fedido e afiado, por mim.

          Era exatamente o que estava acontecendo lá. Enquanto os diretores usavam seus egos como armas e disparavam para o dono da empresa, senti um mal-estar. Vomitei. Um jato de vodca, misturado com espaguete e um pedaço de bolo floresta negra cobriram as estatísticas impressas em papel alto alvura em questão de segundos. Calaram as vozes, os egos, os argumentos, as vontades, ambições, medos e anseios. A mesa ficou em silêncio. De fundo, ouvi alguém sussurrar:

- O diretor está bem?

          Sorri. Com catarro escorrendo de meu nariz e os olhos lacrimejados da força que meu corpo exigiu para devolver tudo aquilo para a natureza, sorri. Um impulso repetitivo de meus pulmões, me lembrava de algo que a muito tempo eu não havia sentido. Reparei que estava gargalhando.

          Acho que é a primeira vez que realmente espero que alguém ache esses meus textos, cartas, enfim. Eu quero muito que você, que me é um completo estranho saiba disso. Acho que foi engraçado sei lá. Como algo tão selvagem pode calar uma mesa rodeada de diretores altamente estudados, qualificados para assumirem cargos profissionais tão importantes? Sinceramente acredito que a selvageria da qual não temos controle pode ser ainda o maior argumento que um ser humano pode ter. Não necessariamente vomitar diante de colegas e seu chefe, mas porque não, agir de forma impulsiva? Porque não fazer o que der na telha e realmente se conectar contigo mesmo, sabe? Aquele momento que é só seu, mas sequer você tem controle. Bastou menos de um segundo para que documentos que demoraram meses e exigiram o esforço de diversos profissionais estavam encobertos de vômito. Hoje aqui, em meu isolamento, descobri isso. Nada, absolutamente nada é mais forte do que o ato comum da natureza. Isso que nos uni, constrói e destrói. Somos isso. Simples como o riacho que corre aqui perto. Ele nunca vai parar de correr e nessa imersão de pensamentos, acho que nunca vou deixar de vomitar.

O fim da história?

          Estendi meus braços ainda enquanto ria e vomitava ao mesmo tempo. Retirei meu paletó de grife italiana e limpei o resíduo da minha boca enquanto aproveitava para abafar minha gargalhada. Apenas sai a passos tranquilos da sala, fechei a porta trás de mim e fui até minha sala pegar alguns itens que seriam essenciais para o que na minha ótica naquela época, fizessem com que meu dia continuasse incrível. Cigarros, chaves da minha cobertura, mais uma garrafa de vodca e o celular. Até hoje me questiono se o ato de vomitar pode ter tido uma metáfora tão adequada quanto teve para mim naquele dia.   

As cartas encontradas de Rogério FonsecaOnde histórias criam vida. Descubra agora