Carta n°31 - Ventre

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          Despi-me por completo enquanto olhava através da janela as gotas escorrendo pelo vidro no lado de fora. As árvores agitavam-se de um lado para outro como um balé abstratamente coreografado e conduzido pelo vento. O relampejo dos raios e o som dos trovões me deram a segurança máxima que alguém poderia ter. Hoje ninguém ia me achar. Ninguém enfrentaria aquela chuva e até os meus vizinhos animais estavam se escondendo em suas tocas.

          Não se ouvia pássaros, grunhidos, não ouvia-se nada. Somente a chuva. Somente as árvores. Era como se toda a mata, inclusive eu, estivesse se calado para ouvi-la. Era como algo muito mais poderoso imperasse todo o céu e tudo abaixo dele assistisse silenciosamente um majestoso espetáculo. Acredito que naquele dado momento, entrei em uma espécie de transe. Nu, na parte dianteira de minha cabana, era chamado para o rio que corre perto dela. Abri a porta de madeira grossa, também rústica e em uma fração de segundo já senti a tempestade me abraçar. Naquele momento não fazia mais parte de dentro, do seco, do feito para proteger, do aconchego artificial. Naquele momento eu também era parte da natureza.

         Em poucos segundos meu corpo estava totalmente molhado pela chuva e eu sentia meus pés se juntando a terra molhada. A temperatura do meu corpo despencou a ponto de me dar calafrios, mas algo completamente oposto a qualquer tipo de desejo de voltar para dentro. Cada passo que eu dava em direção ao rio, era como se eu voltasse para algo ou um estado que nunca fui. Era como se eu estivesse voltando para algo que já senti, mas não me recordo. As gotas densas, pesadas e marcantes abraçavam meu corpo de uma maneira sobrenatural. Junto as elas, minha visão ficou embaçada e algo morno escorria pelos meus olhos. Meu corpo tremia, mas não sabia mais distinguir se era frio ou uma invasão de uma massa enérgica que nunca havia sentido. Quando dei-me por conta eu não estava andando mais e o fato dos meus pés estarem afundados na lama até os calcanhares acusaram que eu já estava parado a um bom tempo.

          Como é difícil dar passos. Fechei meus olhos. A força do cérebro enviando a ordem para o abdômen que passa pela virilha, comandando a articulação do joelho que faz movimentar a canela e as articulações dos pés. Todo esse trabalho em conjunto do corpo humano e mesmo assim temos medo. Achamos que estamos sozinhos. Eu não tinha pressa. Queria aproveitar para respeitar cada momento. Já havia dado tantos passos sem pensar, sem medir consequências, porque seria ali, naquele importante isolamento (também mental) que teria pressa? Pressa de que? Sentia o movimento de minha respiração, quase podia ouvir meu batimento cardíaco. Em uma fantasia inerte em minha mente passei a achar que podia ouvir precisamente onde cada pingo de chuva estava caindo exatamente. Uns três no tronco de árvore morto a metros de onde estava, outros nas folhas da árvore grande que era a mais próxima de minha cabana, um no cabo de madeira envernizado do machado que eu usava para cortar lenha, uns no tambor azul plástico que eu usava para armazenar água de chuva (a essa altura já deve estar para transbordar) outros no telhado de madeira lisa da cabana.

         Dei mais um passo e seguido desse sei outro. O vento gélido em meu corpo nu e molhado me lembrava de que eu estava em movimento. Naquela presente momento não sabia mais, não tinha controle. Senti meus pés imersos de água, depois minhas canelas, joelhos, abdômen, tórax, pescoço, tomei fôlego e passei a ouvir tudo abafado. Estava submerso e já não sentia tanto frio. Agora o rio me abraçava e eu fazia parte dele.

          Meu corpo foi posto em posição fetal e senti ele boiando. Hora uma parte ficava submerso e eu sentia os pingos me lembrando de que sempre haveria uma superfície para voltar quanto (e se) me sentisse a vontade para isso. A cabeça não. Ela estava sempre submersa. Vazia. Eu estava dentro de mim mesmo e sim, essa é a melhor expressão que consegui para descrever o que sentia mesmo depois de rasurar diversas vezes essa parte da carta por falta de achar uma melhor para explicar.

          Naquele momento, naquele estado eu não sabia se estava vivo, morto, doente, saudável e todos os extremos positivos e negativos que nos ensinaram ao longo da vida. Você já sentiu isso? Sinceramente espero que sim. Acho que realmente consegui ter acesso ver nem que seja pela janela o que tem do lado de lá. Nesse novo mundo que já comente contigo. É incrível! Você vira uma energia, algo extremamente poderoso, se sente parte de tudo no presente momento que dá-se conta que na realidade não se faz parte de nada neste plano. Não sei quanto tempo fiquei ali, mas não me faltou ar, não tive anseios, preocupações, medos, limites. Não senti nada, tornei-me nada.

          Mesmo com os olhos fechados eu vi e o lado de lá é maravilhoso! Tudo está conectado e somos todos um. Uma energia serena quase ausente que não perece. Simplesmente habita. Não há necessidade de sentidos, porque já somos ele. O desprendimento de tudo, todos, sentimentos, importâncias e necessidades nos transforma neles. Passamos a ser eles e é aí que viramos um só.

          O rio conduzia meu corpo e a hora que ele soube, me virou de barriga para cima, inclinou-me para frente e a hora que abri os olhos vi o clarão do céu (meu corpo ainda estava submerso). Ergui-me quase sem usar energia e voltei vagarosamente para a superfície. Inspirei e respirei como se fosse a primeira vez. Passo a passo saia do rio e como se fosse uma mãe passando um filho recém-nascido para o colo do pai pela primeira vez, o rio me devolvia ao abraço da chuva e eu era abençoado pelo beijo do vento. Este, também suspirava que não era para contar para ninguém o que eu havia visto e aprendido na experiência anterior.

          Ainda tenho atos falhos. Apanhei minhas canetas, meu calhamaço de folhas e sentei-me em frente a cabana sob uma parte do telhado a uma pequena mesa e banquinho improvisados, ainda nu, na obrigação de te contar isso tudo. Isso tudo que estou te contando aconteceu segundos atrás. Pelo menos neste plano (tenho certeza de que fiquei anos no de lá). Ache a sua janela também e observe tudo o que puder. Se conseguir, não volte para cá.

Talvez essa seja minha verdadeira função.

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