Capítulo 6

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O despertador tocou mas eu já estava acordado.

Fiquei praticamente a noite inteira pensando se deveria voltar à escola ou prolongar minha semana de recuperação por mais uma ou duas semanas. Fui ao banheiro lavar meu rosto e encarei meu próprio reflexo no espelho por alguns minutos. Os cortes tinham, em sua maioria, diminuído drasticamente. Ainda havia um corte grande do lado esquerdo da minha testa, e ao redor estava meio esverdeado e roxo, definitivamente ia deixar uma cicatriz.

Desde tudo o que havia acontecido, toda aquela onda de acontecimentos impossíveis e traumáticos que me atingiram tão forte quanto os socos de Dylan, meu olhar parecia cansado e amedrontado, sempre. Eu tentava dizer a mim mesmo que deveria parar de parecer um garotinho assustado toda hora, mas não conseguia, por que mesmo quando estava no parque da cidade e fechava meus olhos tentando descansar, minhas memórias eram levadas para aqueles momentos, que facilmente eram os piores da minha vida.

Joguei mais água no meu rosto para tentar despertar daqueles pensamentos. Enquanto observava a água descer pelo ralo da pia tentei encontrar algo a mais nela, algo diferente. Me inclinei para frente e tentei sussurrar algumas palavras pro líquido transparente e sem vida caindo da torneira.

Nada.

A água apenas continuou seguindo seu fluxo e eu continuei sendo o idiota que realmente achava que falar com líquidos. Ah Josh, você é um estúpido mesmo.

Desci as escadas com minha mochila e meu casaco de sempre, me preparando para tomar meu café sem falar muito com meu pai para não correr o risco dele perceber que estava mentindo sobre ir realmente para a escola. Talvez hoje eu fizesse um passeio pelos subúrbios imaginando como minha vida seria se eu fosse um adolescente normal com pais normais e amigos normais, ou amigos em geral para falar a verdade. Meu pai estava na mesa de café e minha mãe já tinha ido para o trabalho. Passei rápido por ele pegando uma torrada mas ele me parou antes:

- Ei, calma aí garoto! Bom dia pra você também.

A verdade é que também estava ignorando ele fazia algum tempo porque ainda era difícil encarar ele nos olhos e não lembrar daquela mulher.

- Foi mal pai! - Comecei, tentando parecer apressado - Tô bem atrasado e hoje tenho um teste muito importante de literatura e....

- Engraçado você mencionar seu teste, porque ontem à noite a escola me ligou dizendo que você perdeu dois testes essa semana. - Ele disse, me interrompendo e colocando os talheres na mesa. Me encarava com um olhar sarcástico de desentendimento. - Aliás, disseram que já tem uma semana que você não aparece na escola e estão bem preocupados com seu rendimento escolar.

Mas que merda. Como que eu não tinha pensado nisso? É claro que a escola ia ligar pra ele em algum momento, mas talvez ainda pudesse arranjar alguma desculpa e me safar.

- Poxa, que esquisito. Deve ter acontecido algum tipo de erro no sistema ou algo assim, não dá pra confiar nessas escolas públicas mesmo. - Ok, talvez atuação não fosse meu forte.

- Josh. - Ele parecia mais sério agora, mas não parecia que iria me dar uma bronca ou algo do tipo. - Eu sei que não estou sendo o exemplo de melhor pai do mundo pra você no momento, mas eu não sou idiota, tudo bem?

Ele já sabia de tudo, continuar mentindo apenas iria piorar minha situação, então apenas coloquei a mochila no chão e assenti de leve. Ele continuou:

- Não posso nem imaginar o quanto sua cabeça deve estar confusa no momento, e deve ser bem difícil pensar em ir pra escola e se concentrar, mas vou te dizer uma coisa, se você se afundar nesses pensamentos negativos, se não pensar em mais nada além dos problemas e se recusar a seguir em frente, você vai entrar num ciclo muito pior. - Ele falava e me encarava o tempo todo, ele parecia ter ensaiado esse discurso por muito tempo, mas eu nunca tinha visto ele falar tão seriamente assim sobre algo. - Eu sei disso porque vivo nesse ciclo, Josh. Estou sempre tentando começar algo novo e perdendo os ânimos antes mesmo de tentar, nunca me acho suficiente para nada e acabo fazendo escolhas extremamente ruins. Nós dois sabemos disso.

Quando ele disse essa última parte, abaixou a cabeça um pouco envergonhado, mas respirou fundo e me encarou com os olhos marejados.

- Eu te amo filho, mais que tudo nesse mundo. E odiaria que você acabasse como eu.

- Pai, eu... - Eu travei por um momento, não sabia o que responder. Meu pai se abriu totalmente para mim e eu simplesmente tinha medo de dizer algo errado e machucá-lo ainda mais. Eu era bem mais parecido com meu pai do que podia imaginar. Ele tinha medos, angústias e dores que eu nem imaginava que estavam ali, ele não podia deixar que eu soubesse, deveria ser forte para a família, e agora, vendo que tudo estava lentamente desmoronando diante de seus olhos, não conseguia mais conter o que sentia. Eu queria abraçá-lo e dizer que tudo ia ficar bem, mas como disse, atuação não é meu forte, então apenas assenti firmemente e disse:

- Eu também te amo pai. Todo mundo comete erros, e eu seria muito injusto se deixasse de te amar por isso.

- Se as coisas continuarem muito difíceis e os pensamentos ruins nunca pararem, eu e sua mãe vamos pagar umas consultas de terapia para você, um vizinho me disse que está fazendo muito bem para os filhos dele. Mas primeiro, você precisa voltar pra escola. Hoje.

Assenti novamente e peguei minha mochila. Estava prestes a sair pela porta, mas voltei correndo e dei um beijo na testa do meu pai. Sai pedalando em direção à escola, tentando segurar algumas lágrimas, dessa vez determinado em entrar.

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