PRÓLOGO

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Estou morrendo.

Estou morrendo e nem é pelo sol forte de Las Vegas que fustiga minhas costas cobertas pelo terno preto. Sinto minha pele quente, as gotículas de suor que se acumulam e começam a escorrer. Estou morrendo, mas é por dentro. A pior morte de todas.

Morro um pouco a cada dia que passa. Cada maldita vez que venho aqui, me ajoelhar no túmulo dela, trazer suas flores favoritas, flores que quase não enviei quando era viva, e ursinhos de pelúcia para meu bambino, enterrado junto com a mãe. Morro um pouco quando passo meus dedos ásperos sobre a lápide, os nomes deles entalhado na pedra cedo demais. Abro um sorriso fúnebre, amargo, enquanto seguro uma lágrima e meus dedos escorregam pelas letras e números na pedra. Margareth e Santino Martini. Minha Maggie e meu pequeno Sonny. Minha esposa e meu filho, que eu nem mesmo conheci, agora mortos. Como uma parte de mim.

A sensação de luto e tristeza se intensificam principalmente no dia de hoje. Ironicamente, era para ser um dia feliz. E vejam só. A poucas horas de me casar outra vez, estou aqui, lamentando a perda da minha primeira esposa. Aquela pobre criança de vinte anos nunca poderá substituir Maggie. Eu nem mesmo deveria estar me submetendo a essa porra de matrimônio, não quando simplesmente faz poucos meses que a perdi, depois de um ataque covarde dos Bianco à minha casa por causa de uma maldita guerra entre as famiglias. Esse casamento é para selar, de vez, a paz em Vegas e garantir a liderança e soberania dos Martini na Mahyas D'Arezzo. Eu não deveria estar a um passo de me casar com aquela garota virgem, quinze anos mais nova, mas estou. É o meu sacrifício para estabelecer a paz, para que não percamos mais ninguém. Já perdemos gente demais.

Suspiro e me levanto, sem desgrudar os olhos do túmulo. Fico aqui, cabisbaixo e quieto, controlando toda a raiva e tristeza que se acumulam dentro de mim, por mais algum tempo, até que decido que preciso ir. Estou atrasado para a cerimônia. Bato a poeira da roupa e caminho lentamente até meu carro, estacionado do lado de fora do cemitério. Tento ignorar pela vigésima vez meu celular tocando dentro do bolso. O que um homem precisa fazer para ter a porra de um segundo de paz e luto? Exaspero pesadamente enquanto me aproximo do veículo e atendo a ligação de Enrico, meu irmão mais velho e capo dei capi da famiglia.

— O que foi?

Ettore. — Sua voz está calma, mas soa como uma ameaça velada. — Não me obrigue a te caçar até o inferno se for preciso caso esteja pensando em fugir e desistir desse casamento.

Dou uma risada esganiçada, sombria, sem nenhum resquício de humor.

— Eu não sou um covarde de merda, Enrico. Me propus a me casar com a filha de Romeo e vou. Já estou a caminho. Não tem que se preocupar.

Venha logo. — É tudo o que ele diz antes de desligar.

Jogo meu corpo para dentro do carro e confiro o retrovisor. Não sou um homem paranoico, embora devesse ser. Nossa família coleciona inimigos como uma criança coleciona figurinhas de times de futebol. A questão é que eu vinguei a morte da minha esposa e do meu filho, pegando o maldito de surpresa. Os Bianco estão subjugados, exilados de Las Vegas desde que eu assumi a liderança do clã ao dar cabo no maldito Luigi, o responsável por ordenar o assassinato deles. Não preciso me preocupar com eles, de verdade, mas nunca se sabe até que ponto algum aliado deles está disposto a ir para se vingar. Por isso, desde então, tenho tomado medidas cautelares com mais afinco. Conferir o retrovisor do carro faz parte.

Os bancos de trás estão vazios. Quando volto o olhar para frente e vejo meus olhos azuis no reflexo do espelho isso me assusta mais do que se eu tivesse sido surpreendido por um inimigo. Noto como estão abatidos, cansados, sem vida. Minha expressão rígida e infeliz me envelhece além dos trinta e cinco anos que eu tenho.

Balanço a cabeça de um lado a outro e afasto os pensamentos. Giro a chave na ignição e rumo até a cerimônia do meu casamento, atrasado em quase meia hora, que acontecerá na mansão de Enrico, na Langley Estate Street. Levo cerca de vinte e cinco minutos para chegar. Os convidados já estão por aqui, sentados nos bancos dispostos para o momento. Não quero observar o local, mas acabo por fazer exatamente isso. Decoração em branco e azul, buquê de tulipas e rosas nos mesmos tons. Um pouco mais afastado do altar, as mesas e cadeiras para a festividade, o bolo de casamento de quatro andares. Uma extrema perda de tempo e de dinheiro organizada pela minha futura esposa, que prefere chamar esse circo todo de casamento.

Alguém me puxa pelo braço, carregando-me até um local mais aos fundos. Enrico.

— A tradição não é essa — ele diz, segurando um charuto entre os dedos. — A noiva é quem se atrasa, Ettore.

Dispenso seu comentário com um gesto de mão.

— Preciso de um uísque — peço, sentindo a garganta seca.

— Agora não — adverte, soltando a fumaça longe do meu rosto. — Giovanna estava à beira de um colapso. Vamos logo casar você — ordena, indicando para o altar.

Reviro os olhos e suspiro, caminhando até lá enquanto penso no que meu irmão disse. Giovanna estava à beira de um colapso. Travo o maxilar, perguntando-me porque raios ela estaria à beira de um colapso. Nós mal nos conhecemos. Se trocamos duas dúzias de palavras desde que esse matrimônio foi acordado, foi muito. Talvez sua preocupação seja mais com a humilhação que sentiria se eu desistisse do casamento no dia do casamento do que por qualquer outro motivo.

Obrigo-me a parar de pensar sobre isso e me disponho no meu lugar. Só demora mais cinco minutos até que a garota surge na ponta extrema oposta do tapete vermelho que faz o percurso até o altar, enroscada aos braços do pai — um homem maior do que ela em largura, apenas —, caminhando na minha direção.

Não posso ver seu rosto, coberto pelo véu branco do vestido de noiva comportado. O velho De Santis finalmente termina o caminho até aqui e me entrega sua filha, esticando a mão dela para mim. Eu olho fixamente para sua mão delicada, branca, parece-me até que é macia, de unhas fortes, bem tratadas e pintadas de branco.

Então, eu me recuso.

Recuso-me a tocá-la. Recuso-me a aceitá-la como minha mulher porque uma parte de mim, isso se não toda a parte de mim, ainda pertence a Maggie. Isso não é um casamento. É um contrato. Uma anistia. Uma garantia de paz. É tudo. Menos a porra de um casamento.

Por isso, eu me nego a pegar na sua mão e ajudá-la a subir dois pequenos degraus para o altar. Tudo que faço é dar um passo ao lado e me virar para o padre, querendo que esse maldito dia acabe logo de uma vez. Ouço os burburinhos atrás de mim enquanto Giovanna se ajeita ao meu lado, a um palmo de distância.

A cerimônia começa. É uma maldita tortura. São longo trinta minutos. Votos que não quis trocar e os repeti mecanicamente. Na saúde e na doença e blábláblá. Giovanna tampouco pareceu sincera ao repetir as mesmas palavras, sempre forçando um sorriso odioso para mim. Então, vem as alianças. Enrico é quem as traz. Quebro o protocolo de casamento quando pego o meu anel e coloco em mim mesmo, esperando que ela entenda e faça igual. Giovanna, agora com o véu erguido, olha-me de um jeito que não sei explicar, talvez furiosa pela minha recusa em tocar nela. Não sei. Não quero saber.

— Pode beijar a noiva — o cerimonialista diz.

Meu coração dispara dentro do peito nesse momento, de uma maneira dolorosa. Não farei isso com Maggie. Não vou trai-la nesse nível. Dou uma risada interna, pensando nas amantes que tive. Não importa quantas vezes a traí. Eram só trepadas sem sentido. No fim do dia, era para Maggie que eu ia, era por ela que meu coração batia. Meu pau subia para qualquer uma, mas meu coração só acelerava quando se tratava da minha esposa.

Essa tola aqui na minha frente não vai, nunca, substituir o amor da minha vida.

Aproximo-me vagarosamente dela. Vejo seu peito se comprimir, como se estivesse segurando uma respiração, e desvio minha boca para seu ouvido, mantendo uma distância mínima, e sussurro:

— Você nunca terá permissão para me tocar. Fique longe de mim, Giovanna.

Não espero por sua reação. Afasto-me dela e fujo de toda essa babaquice de festa que vai começar. 

INTOCÁVEL (NA ÍNTEGRA ATÉ 20/04)Onde histórias criam vida. Descubra agora