O Sumiço

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Jessy e eu adoramos observar o pôr do sol ao fim da tarde no nosso cantinho do prazer.

Não somos namorados, amantes ou algo assim, ela é uma garotinha, que ainda não sei de onde veio, que estava em busca de abrigo aos 11 anos de idade e bateu à porta da minha casa às 23:30 numa noite de chuva. Ela estava vestida apenas com uma camisa cinza maior do que o ideal, aparentemente masculina, em sua camisa havia um número. 374. Estava encharcada devido à chuva, estava com os pés descalços, em seu rosto havia uma expressão de medo e ódio. Não a conhecia e nunca tinha visto ela por aqui. Eu tinha apenas 17 anos e não sabia se deixava aquela garota na rua ou se convidava ela para entrar, mas por sorte minha mãe apareceu e ao ver a situação daquela garota, que até então não sabíamos o nome, a convidou para entrar, lhe ofereceu um cobertor e um chocolate quente. Era uma garota diferente, mas em poucos dias acabou se tornando de casa.

Hoje é seu aniversário, completa seus 14 anos, mas nunca nos contou oque lhe fez correr em busca de abrigo naquela noite. Mas nós não fazemos tanta questão disso, percebemos o quanto ela treme ao falar do assunto então é melhor fingir que nada aconteceu. Seus olhos azuis são claros como o dia, seus cabelos alourados encantam, parece um ser de outro mundo, onde a beleza é infinita. Sua pele clara se destaca entre nós, afinal, todos aqui do bairro temos a pele escura e cabelos crespos, mas, além de todas as diferenças físicas, somos unidos e temos mentes iguais. Ela adora as coisas simples como acender uma fogueira e contar histórias, ama a pesca no rio que fica a uns metros de casa e ali, um pouco mais acima, tem o nosso cantinho onde observamos o pôr do sol no fim da tarde.

Para ser sincero, acho que ela não gosta tanto assim da pesca, mas adora, sim, o pôr do sol.

- Pê, - diz ela - hoje é meu aniversário e sabe o que quero de presente?

Estávamos sentados à sombra de uma amendoeira.

- Olha lá hein, não venha me pedir para buscar o sol para você, como no ano passado - respondi com ironia.

- Não - ela sorri.

- E então?

- Quero um vestido.

Fiquei surpreso, confesso.

- Tudo bem. Hoje à noite vou ao centro e compro para você.

Bom, não tinha dinheiro, mas um pedido de minha irmã mais nova, aniversariante, eu não poderia recusar.

- Ah! Muito obrigado. Você é o melhor irmão do mundo - disse ela e em seguida me abraçou.

Ficamos lá até o sol se pôr. Um relógio que eu havia encontrado outro dia no centro indicava que já eram 17:46.

- Preciso ir ao centro comprar um presente para uma garota irritante - disse eu, sorrindo.- Você sabe o caminho de casa, certo?

- Sim, mas quero te acompanhar. Posso ir com você ao centro?

- A mamãe vai ficar chateada. É melhor você ir para casa, chego lá em 20 minutos.

- Mas...

Antes que ela pudesse questionar, me levantei e segui uma trilha ( feita por mim ) que funcionava como um atalho para chegar ao meu destino.

O centro é um lugar grande, bastante movimentado e com seguranças por toda a parte. Homens de farda azul punem os ladrões com porradas e em alguns casos espancam até à morte, seja por roubar um carro de luxo ou um simples pãozinho do lixo da padaria. Acho que gostam de fazer isso pelo poder da autoridade que podem exercer ou talvez por ódio à vida.

Se souberem que estou à procura de um vestido para roubar, provavelmente meu castigo será a morte.

Há uma loja chamada Pérola Gucci, é onde vendem as roupas e jóias mais valiosas da cidade e, vamos combinar, se é para arriscar minha vida, que seja por um preço justo. Um belo vestido branco com bordados de flores levemente amareladas, mangas curtas e um laço na cintura exposto em um manequim na frente da loja chamou minha atenção.

É este! Combina perfeitamente com a Jessy e ela vai amar, sem dúvidas.

Próximo à loja estão dois daqueles homens de farda azul responsáveis pela suposta paz e segurança daquela área.

No interior da loja parece não haver ninguém além de uma garota ruiva com uma blusa vermelha com uma estampa de caveira e um short jeans, um pouco acima do joelho, mascando um chiclete e com os olhos vidrados na tela do celular. Ainda não sei como vou chegar até lá, preciso de um plano.

Por sorte não precisei de plano algum. No momento em que eu estava elaborando um roubo e uma fuga que pudessem ser concluídos com êxito, um garoto, com seus 16 ou 17 anos de idade, tentou furtar uma bicicleta que estava estacionada em frente a uma livraria a uns 15 metros da loja em que eu planejava o roubo do vestido. Os homens de farda azul foram, como cães de caça, em direção ao garoto, deixando a loja completamente vulnerável, gerando assim minha grande oportunidade.

Foi fácil pegar o vestido sem que alguém notasse, todos estavam focados na agressão dos homens de farda azul ao garoto.

Corri de volta à trilha e segui em direção à minha casa segurando o presente da minha irmã. Já eram 18:32, a hora passou tão rapidamente, mas tudo isso valeu à pena, apesar do garoto ter sofrido as consequências de um roubo mal executado, a Jessy vai ficar muito feliz e isso é o que importa. Às vezes, para uma pessoa sorrir a outra precisa chorar, não é mesmo!? A vida nem sempre é justa.

Nossa casa fica num bairro pobre chamado Santiago. Totalmente ignorado pela prefeitura, numa área rural onde não tem pavimentação, nem carros ( somente de agricultura ) e muito menos celulares ou algum desses meios de comunicação modernos.

Estou chegando em casa quando avisto minha mãe sentada num banquinho em frente à porta

Me aproximo e ela me pergunta:

- Onde está a Jessy?

Um calafrio me toma o corpo.

- Não sei, ela...Ela não veio para cá?

- Não. Vocês não estavam juntos? - Disse minha mãe com um tom preocupado quase desesperada.

- Sim, estávamos mais cedo, mas fui ao centro. Ela queria ir comigo, mas recusei e disse para ela vir embora. Será que...

- Acho que ela tentou te seguir até o centro.

Fiquei pasmo ao imaginar ela em meio a tanta gente má, aqueles homens de farda azul...

- Vou procurar ela.

Deixei o vestido roubado, em casa e voltei em direção ao centro. Desta vez buscando qualquer sinal de minha irmã.

Quem é ela?Onde histórias criam vida. Descubra agora