Olhos amarelos

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Então de repente todos começaram a se dispersar, sumindo rapidamente dentro de buracos e becos. Tudo ficou escuro e frio. E

-Ei, vocês! Onde estão? Olá?!...

Então ouvi sussurros e dizendo "por aqui" , "estamos aqui ", "siga nos" ... seguidos de rastejos e gruinhidos.
Eu vi alguns ratos de novo, que seguiam os mesmos becos e buracos a dentro.

Eu fiquei alí por alguns segundos e escolhi um dos caminhos. E então comecei a correr, correr e correr, e então senti meu corpo inclinar, meus braços apoiarem no chão e tomarem impulso. Dei um grande e salto e continuei...pulando, mais rápida que os ratos. Minha vista foi ficando escura naquele túnel e meus movimentos estavam em descontrole, ouvia os mesmos sussurros, ecos e gruinhidos.

Então de repente uma luz forte inavadiu o lugar e me cegou completamente, fechei os olhos e não senti mais o chão... me senti apenas caindo lentamente, como se flutuasse em um vazio sem fim de muita luz e calor.
Até que senti suavemente minhas patas tocarem o chão novamente, em paz absoluta, abri o os olhos e estavam todos lá.

-Surpresaaaa!!!
Eu não consegui evitar meu sorriso, me senti feliz em reve-los e eu nunca tinha tido uma festa surpresa na vida. Haviam balões, comidas e música. Todos novamente vieram ao meu encontro, todos menos a menina-raposa, que estava carrancuda e de braços cruzados escorada em uma parede.

Eu não sei o que deu em mim, mas todos eram tão simpáticos e calorosos que eu me deixei levar sem relutar.
Eles me mostraram tudo o que preparam, haviam várias comidas que eu amava, as músicas que eu ouvia e a decoração era simples, mas bem colocada.
Eu reparei em algo diferente em meio as mesas de doces, mas que me chamou muita atenção... haviam dois tonéis enormes cheios de giz de cera e alguns poucos lápis de cor.
Me perguntei se eles também sabiam que eu gostava muito de pintar na minha vida antiga, e se aquilo eram presentes para mim...
Mas só perguntei sem pretensão:

-Aah, porque encheram esses baldões de lápis? Faz parte da decoração da festa?
Uma menina com rosto de esquilo me respondereu:

-Não. Sabe que eu não sei? Quando chegamos eles já estavam aí...

Outra criatura com rosto de ornitorrinco continuou:

-Resolvemos deixar aí, está bem pesado.

Achei meio estranho, ia perguntar de quem era mas dei de ombros...
Eu estava faminta e fui direto para a mesa de comidinhas me fartar.
Todos comiam muito, dançavam e estouravam balões. Fazia tempo que eu não me sentia como criança outra vez, eufórica e também tão acolhida e amada...eu nunca tive tantos amigos na minha antiga vida  mas esses seres gostavam mesmo de mim.

Passada algumas horas alí, a sensação esquisita que aumentava em mim era de que eu e as criaturas éramos melhores amigos há tempos, e tudo começou a ficar estranho a medida que o tempo passava e o que parecia era que eu deixava de responder por mim por alguns instantes... e eu já não me interessava em perguntar o que estava acontecendo e só agia como se estivesse habituada.

Eu às vezes me pegava rindo com alguns deles ou brincando de ciranda em uma roda, pulando, dançando em rodopios alegres e cantarolando...e quando me dava conta de repente de tudo aquilo, me sentia atordoada mas algo na minha mente evitava e afastava esses questionamentos...
Eu sempre fui um pouco assim durante a vida, inconsequente e destraída em excesso. Tinha acessos de desrealidade e despersonalização aos montes.
Mas seria mesmo a explicação para isso?

Eu até me sentia melhor com essa atitude.
Eu sabia que precisava parar, mas não conseguia me controlar, eu parecia presa em uma espécie de transe. Estaria eu entorpecida por algo que bebi ou comi naquela "festa"? Mas eu estava me divertindo tanto com eles.
Todos exceto a raposa.

Ela não estava nada feliz, e naquele momento um ódio tremendo emanava de seu olhar sobre nós, a espreita, sorrateiro.
Eu notei que de alguma forma sentia que eu já havia visto a carranca dessa criatura antes.
Observei de longe até que subitamente seu rosto se virou em direção ao meu olhar... arregalei os olhos e congelei, ela aumentou mais ainda a carranca e eu sem graça virei meu rosto para outro lado, e tentando disfarçar continuei a pular e rodopiar com as outras criaturas, espiei de canto de olho e ela já havia sumido, senti um breve alívio e depois abri um leve sorriso...
Mesmo brava era um ser magnífico, e de todos os "bichos" alí, talvez a mais perigosa seria ela, na vida real, pensei comigo, raposas caçam outros bichos pequenos como nós não?
Senti um calafrio percorrer a espinha, estaria ela esperando o momento certo?

Meus pensamentos foram interrompidos por uma exclamação de uma jovem garota gambá, quebrando também todo o estranho encanto da festa.

- Gente, venham ver isso!

Havia uma expressão de nojo em seu rosto e um tom de medo quando ela falou.
Ela estava perto de um dos tonéis de giz de cera e quase todos fomos ver do que ela estava falando.
Enquanto chegava perto ouvia gruinhidos de mais nojo e observava caras amarradas de estranhamento...

Vingança no inferno Onde histórias criam vida. Descubra agora