Com a cabeça já dentro de água, cansada de tomar ou não decisões, estava certo o que ela, garota de pensamentos tão fluidos, tinha de fazer para acabar com tal sofrimento constante. Era tão claro o que ela cria, a sua visão do mundo depressiva e triste se tornaram um produto do seu cérebro, agora correntes impossíveis de romper. Com cuidado, pegou na arma com as suas mãos geladas e, apontando para a parte lateral da sua cabeça, disparou o gatilho. Ocorreu uma metamorfose! Em vez de não sentir nada, sentiu uma liberdade estranha, sentiu que já não era uma consciência mas sim apenas a parte responsável por memórias. E numa tentativa de introspecção, se sentiu fluída, como água, a água que em toda a sua vida triste e monótona se agarrou como forma de manipular os seus sentimentos, fazendo-os vivos e reais. Ela finalmente se viu mover por uma corrente forte de água em que a garota agora é parte. Se sentiu pela primeira vez em meses feliz! Mas enquanto conseguia o que pensava ver o azul da agua que se fundira, via nada para além da cor preta, e aquilo que antes era um movimento rectilíneo, descia num abismo. Tentava em desespero, involuntariamente, esticar a mão por algum tipo de divindade mas nada apareceu. Só o escuro.
Mas lá em baixo ouviu uma voz:
-É isto.
Sem falar, a garota questiona a afirmação do anónimo.
-Isto é nada mais que preto e nada. Tu estás destinada a passar o resto da tua eternidade como uma possa de água, parada e impotente.
Questionou mentalmente o porque, sem conseguir falar.
-Porque em vida, apenas olhas-te para água como razão de viver. Tu te materializas-te numa realidade idealizada de que a água é tudo e é algo perfeito. Preferias estar com a água do que contigo mesma, e por isso agora não és tu!
Brota uma pequena felicidade.
-Mas não foste a única a cair neste poço. Todos aqueles que entregavam a sua vida à terra acabam assim. A solidão é algo garantido para todos depois da morte, mas vocês, admiráveis criaturas devotas à terra e suas materializações, passam eternamente como queriam. Tu como água num poço, outro alguém como nuvem num mundo sem pessoas para as apreciar e até alguém que vai passar a sua eternidade como um pedaço de papel destruído. E sabes o que todos tem em comum? Estavam todos quebrados em pedaços de si mesmos, buscando infinitamente naquilo que gostavam, uma escapatória. Ganharam nada, nada mudou.
A garota, perplexa, se pergunta do significado disso tudo.
-A tristeza és tu. Não se tem consciência e não se pode controlar mas és tu. Todo este fim não foi nenhum erro, morrer é um desejo, mas a decisão foi precipitada? Claro que não, não aguentavas mais. Por isso, agora és a água. Fluída. Solitária. Mais uma água que ninguém se vai lembrar. Tu viveste uma vida inútil, sem significado.
A garota se sentiu algemada neste discurso. Concordava com cada palavra subitamente dita. Sabia que tudo valeria para nada mas não queria passar a eternidade no escuro. A morte foi desejada novamente, e novamente, desejo concebido novamente, e novamente, e novamente. Ela enlouquecera, se questionava o que fazia de errado para não parar de sofrer. E não sofria, não sentia, era uma memória. Foi então que apenas foi água em seus olhos que fora. E pergunta quem é a voz, e ela responde:
-Eu sou tu, o escuro.
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A garota dos pensamentos em água
Mystery / ThrillerUma garota que ainda não se encontrou, apenas se segura na água dos longos banhos que toma onde tudo faz. Ela embarca num mistério introspectivo e explora a natureza humana assim como as histórias da vila em que vive!