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Arrependo-me de não ter prestado atenção aos sinais. Se pudesse imaginar que estes seriam os
últimos dias da minha vida, ou melhor, da vida com a qual eu estava acostumada, isso faria alguma diferença?

De uma coisa eu tinha certeza: eu deveria ter ficado em casa naquele dia e jamais ter colocado os
pés naquela maldita praça. Jamais!

—Venha, Any

Chamou Priscila eufórica, apontando para um showzinho prestes a começar na praça Dam, a minha predileta em Amsterdã. Quando me aproximei, foi tudo tão rápido que meu cérebro mal conseguiu processar a sequência de eventos que aconteciam diante de meus olhos.

Zooomp! Zooomp! O gemido surdo do ar sendo apunhalado. Fragmentado. Zooomp! Uma praça. Uma aglomeração de pessoas numa roda. O artista de rua em sua assustadora exibição com facas voadoras. Seu olhar concentrado ficando estranho, aéreo talvez. As cintilantes facas se movimentando com incrível rapidez. O homem se aproximando de mim. Zooomp! As lâminas afiadas se chocando, produzindo hipnóticas faíscas e gritos de delírio. O exibicionista se aproximando ainda mais. A atmosfera cinzenta, o inebriante tilintar e brilho das facas, o burburinho de excitação da plateia e… meu cérebro processando as imagens com dificuldade. Zooomp! As facas letais cada vez mais perto. Meu
estado de transe subitamente interrompido por uma voz incisiva atrás de mim.

—Abaixe-se!

Tive a sensação de que alguém havia me puxado e, ao me inclinar para ver quem era, senti um vento frio passar pelos meus cabelos. Só deu tempo de ouvir um ohhh!!! das pessoas ao meu redor. Por que todas estavam olhando para mim? Aturdida, instintivamente levei a mão à ardência em meu
pescoço e meus dedos se depararam com um filete de sangue.

Então entendi o que acabara de acontecer: uma das facas havia se desprendido da mão do tal sujeito e voado diretamente em minha direção. Com certeza teria transpassado meu pescoço se meu reflexo não fosse tão… tão incompreensivelmente rápido!

ANY, VOCÊ ESTÁ BEM?— gritou Priscila supernervosa. —Oh meu Deus, foi por pouco!

—E-estou bem! Foi só de raspão.— Num misto de atordoamento e preocupação, as palavras saíam trêmulas de minha boca.

Céus! O que havia acabado de acontecer ali? Uma vertigem por queda de pressão?

Meu Deus! Meu Deus!—gemia Priscila olhando em pânico para todas as direções. —Venha, vamos sair deste lugar!—Acelerada, ela me empurrava para longe da multidão.

—Calma, mãe. Não aconteceu nada!

Tentei refrear sua fuga enlouquecida dali, mas perdi a força e meu coração entrou num compasso desritmado quando seus dedos gelados tocaram a minha pele.

Ah, não! Por favor, mãe. Não. Não. Não. De novo, não. 

Confusa em meu próprio caos, presenciei a expressão de pânico se agigantar dentro de seus olhos
castanhos e, à medida que nos aproximávamos de casa, fui perdendo espaço para o costumeiro (e maldito!) brilho opaco da angústia. Respirei fundo, lutando a todo custo para abafar a sinfonia desafinada do
desespero que explodia em meus ouvidos, mas os sinais deixavam claro que era um caminho sem volta.

O estrago estava feito. Adeus, Holanda!

Já imaginava o que viria a seguir: a neura de minha mãe nos faria deixar Amsterdã, assim como acontecera com as dezenas de cidades em que tínhamos vivido nos últimos dezessete anos. Bastava apenas algo ruim acontecer comigo.

O que não era nada icomum...

—Arrume suas roupas, filha.—Ela mantinha a cabeça baixa enquanto abria aleatoriamente as gavetas do armário da cozinha. Seu típico cacoete. Conhecia seus modos melhor que a minha própria sombra: ela estava ganhando tempo e coragem antes do novo confronto, antes de se deparar com a ira e a frustração estampadas na minha face e na minha alma.
—Partiremos amanhã!

NÃO PARE! {Noany} [1]Onde histórias criam vida. Descubra agora