Capítulo 3

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Ele estava empoleirado displicentemente na cerca da varanda, olhando a chuva. O cheiro de terra molhada ali fora era muito mais intenso e estranhamente, revigorante. Era muito fácil deixar-se levar naquelas fantasias de plano de aposentadoria, considerando-se morar em um lugar assim. Estabelecer uma rotina pacífica e tranquila, acordar todo dia para regar as plantas, verificar a horta. Ao final da tarde sentar-se com os gatos em uma poltrona, tomando chá e assistir o pôr do sol.

— Pensando em quanto tempo vamos demorar para sair daqui? — ouvi sua voz grave e encorpada levemente abafada pelo som da chuva, mas ainda muito característica.

— Na verdade não estou com pressa — informei, dando de ombros. — Não tinha muitos planos para hoje, além de ficar passeando por aí. Estou tentando não fazer muitos planos por agora, sabe? Quer dizer, agora mesmo estava pensando em me aposentar em um lugar como esses, mas não estou levando a sério.

— Então está sendo uma viagem não só de férias, mas de autoconhecimento?

— Não sei bem se posso colocar dessa forma, mas de um jeito ou de outro, meio que acabou tornando-se uma espécie de jornada, ou algo assim — expliquei. — Estou prestes a completar trinta anos e estou meio que pirando com isso.

— Ah, a crise dos trinta — ele moveu a cabeça em concordância. — É uma fase difícil. Envelhecer, na verdade, é sempre difícil. Mas tem suas vantagens, você tem a oportunidade de tornar-se cada vez mais sábio, mesmo que quanto mais se adquira conhecimento, mais entende-se que não sabe nada.

— É, Sócrates sabia o que estava fazendo — dei risada. — Mas espere um pouco, você tem mais de trinta? Quero dizer, quanto mais de trinta você tem?

— Tenho trinta e sete — ele virou o corpo de lado, encostando toda a lateral do tronco na cerca, para me encarar. — Estou na fase da crise dos quarenta.

— Meu deus, quantas crises existenciais existem? — nós dois rimos ao mesmo tempo. — Mas você não deve estar falando sério. Só está dizendo isso para que eu me sinta melhor.

— Gosto de pensar que sempre estamos em crise. Pelo menos, é o que torna os humanos diferente dos outros animais, somos conscientes de nossa própria consciência e existência, e constantemente ficamos repensando essas questões, ao longo da vida.

— Essa sabedoria toda é resultado da crise dos trinta pela qual passou? — brinquei e ele sorriu.

— Dos trinta e cinco — e deu uma piscadinha. Revirei os olhos.

— Você tem razão, de qualquer modo — encarei a cerca escurecida pela água e passei os dedos sobre a fina camada d'água que estava tentando passar pela superfície, para finalmente ser absorvida e se tornar uma coisa só, em conjunto com madeira. — Meio que isso fica evidente quando completamos mais uma década de vida, porque é meio que um rito de passagem.

Quando voltei a encará-lo, nossos olhos se encontraram e foi quando percebi que estávamos ligeiramente próximos. Perto o bastante para ver seus olhos agora muito mais claramente, estavam extraordinariamente claros. Henry estava sério agora, concentrado. Talvez refletindo sobre todas essas coisas, como eu?

Que merda para ele, concluí. Ficar preso por algumas horas com uma pessoa com um papo pesado desses.

— Podemos falar de algo menos profundo, se você quiser — propus, tentando amenizar o clima. — Afinal, são apenas o quê, quatro da tarde? Muito cedo para assuntos complexos assim.

— Muito pelo contrário, gosto de conversas complexas — ele ainda não quebrou o contato visual. Muito raro encontrar pessoas que olham tão diretamente nos olhos, como ele fazia. — Se sua preocupação é que possa estar me chateando, apesar de ter razão em muitas coisas, pelo que conheci de você até agora, dessa vez posso garantir que está enganada.

Coincidence [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora