Chamados, segundo creio, de direito divino aos preceitos que o próprio Deus nos transmitiu. Ele queria que os judeus comessem um cordeirinho cozido com folhas de alface e que os convivas o comessem de pé, com um cajado na mão, em comemoração da Fasê, a Passagem; ele ordenou que a consagração do sumo sacerdote se fizesse mediante a colocação de gotas de sangue em sua orelha direita, em sua mão direita e em seu pé direito, costumes extraordinários para nós, mas não para a Antigüidade; ele queria que depositássemos no bode expiatório Hazazel as iniqüidades do povo; ele proibia que se comessem peixes sem escamas, porcos, lebres, ouriços, corujas, grifos, grilos etc.
Ele também instituiu festas e cerimônias. Todas essas coisas, que pareciam arbitrárias às outras nações e submetidas ao direito positivo e aos costumes, eram comandadas pelo próprio Deus e se tornavam de direito divino para os judeus, assim como tudo o que Jesus Cristo, filho de Maria, filho de Deus nos comandou é de direito divino para nós.
Evitemos procurar descobrir aqui por que Deus substituiu a lei que havia dado a Moisés por uma lei nova, ou por que ele havia mandado Moisés fazer muito mais coisas do que ordenara ao patriarca Abraão e por que Abraão tivera de fazer muito mais do que Noé. Parece que ele se digna a adaptar aos tempos e à população do gênero humano: trata-se de uma gradação paternal, mas esses abismos são profundos demais para nossa débil visão. Vamos manter-nos dentro dos limites de nosso tema; vamos estudar simplesmente como era a
intolerância entre os judeus.É verdade que nos livros do Êxodo, do Levítico, dos Números e do Deuteronômio existem leis muito severas sobre o culto e castigos mais severos ainda. Muitos comentadores tiveram dificuldade em conciliar os preceitos de Moisés com as passagens de Jeremias e de Amós ou com o célebre discurso de Santo Estêvão, relatado nos Atos dos Apóstolos. Amós diz que os judeus ainda iam ao deserto adorar Moloque, Renfam e Quium. Jeremias diz expressamente que Deus não exigiu qualquer sacrifício de seus pais quando saíram do Egito. Santo Estêvão, em seu discurso aos judeus, expressa-se deste modo: “Eles adoraram o exército do céu; não ofereceram a Deus nem vítimas nem sacrifícios no deserto durante quarenta anos; levantaram o tabernáculo do deus Moloque e a estrela de seu deus Renfam”.
Outros críticos inferem do culto de tantos deuses estrangeiros que esses deuses foram tolerados por Moisés e citam como prova estas palavras do Deuteronômio: “Quando estiverdes na terra de Canaã, não mais fareis como fazeis nos dias de hoje em que cada um faz o que melhor lhe parece”.
Apóiam sua opinião sobre o fato de que nenhum ato religioso do povo é descrito durante a passagem pelo deserto; não há celebração da Páscoa, não se fala em Pentecostes, não existe qualquer menção de que tivesse sido celebrada a Festa dos Tabernáculos e nenhuma ocasião de preces públicas é estabelecida; até mesmo a circuncisão, esse selo da aliança de Deus com Abraão, tinha deixado de ser praticada.
Eles se baseiam ainda na história de Josué. Esse conquistador disse aos judeus: “A opção vos é dada: escolhei qual partido mais vos agrade, se ides adorar os deuses que servistes na terra dos amorreus, ou se preferis aqueles que conhecestes na Mesopotâmia”. O povo respondeu: “Não será assim, nós serviremos Adonai”. Josué lhes replicou: “Vós mesmos escolhestes; tirai, portanto, do meio de vós os deuses estrangeiros”.Incontestavelmente, eles haviam adorado outros deuses sob Moisés, além de Adonai.
É totalmente inútil refutar aqui os críticos que pensam que o Pentateuco não foi escrito por Moisés; tudo o que tinha de ser dito a respeito desse assunto já foi dito há muito tempo. Mesmo que algumas pequenas partes dos livros de Moisés tenham sido escritas no tempo dos Juízes ou já na época dos pontífices, não foram menos inspiradas e menos divinas.
É suficiente, segundo me parece, que as Santas Escrituras comprovem que, apesar das extraordinárias punições previstas para os judeus que seguissem o culto de Apis, eles conservaram durante muito tempo total liberdade. Pode ser até mesmo que o massacre promovido por Moisés de 23 mil homens pelo culto do Bezerro de Ouro erigido por seu irmão o tenha feito compreender que ele não ganhava nada com o rigor e tenha feito com que ele se sentisse obrigado a fechar os olhos sobre a paixão do povo pelos deuses estrangeiros.

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Tratado sobre a Tolerância - Voltaire
Non-FictionNa França, nas décadas anteriores à Revolução Francesa, Jean Calas, um comerciário protestante da cidade de Toulouse, foi acusado de assassinar o filho, que queria se converter ao catolicismo. A sentença foi a pena de morte, e a execução no suplício...