Se é útil conservar o povo na superstição

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Tal é a fraqueza do gênero humano e tal a sua perversidade que, indubitavelmente, é melhor que ele seja subjugado por todas as superstições possíveis, desde que não venham a causar assassinatos, do que viver sem religião. O homem sempre teve necessidade de um freio e, ainda que possa ter sido ridículo fazer sacrifícios aos faunos, ninfas e naiades, era bem mais razoável e útil adorar essas imagens fantasiosas da Divindade do que viver no ateísmo. Um ateu polêmico, violento e robusto seria um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário.

Quando os homens não têm noções sadias da Divindade, as idéias falsas ocupam seu lugar, como durante épocas infelizes se comercia com moeda falsa na falta da verdadeira. Os pagãos temiam cometer crimes, porque tinham medo de ser punidos pelos falsos deuses; os malabares têm medo de ser castigados pelo seu pagode. Em qualquer lugar em que houver uma sociedade estabelecida, uma religião é necessária; as leis reprimem os crimes conhecidos, enquanto a religião se encarrega dos crimes secretos.

No entanto, tão logo os homens sejam levados a abraçar uma religião pura e santa, as superstições se tornam não só inúteis como também muito perigosas. Não se deve querer nutrir com bolotas de carvalho aqueles a quem Deus se dignou a alimentar com pão.

A superstição está para a religião na mesma proporção em que a astrologia está para aastronomia; é a filha abobalhada de uma mãe muito sábia. Mas essas duas filhas durante muito tempo subjugaram toda a Terra.
Naquela época em que, durante nossos séculos de barbárie, apenas dois ou três senhores feudais possuíam em casa um exemplar do Novo Testamento, poderia ser perdoável apresentar fábulas ao povo comum, o que inclui os senhores feudais analfabetos, suas mulheres imbecis e os brutos que tinham por vassalos; era a época em que os levavam a crer que São Cristóvão tinha carregado o Menino Jesus de uma margem à outra de um rio; impingiam-lhes histórias de feiticeiras e de possessos; eles acreditavam facilmente que São Joelho curava a gota e que Santa Clara curava olhos doentes. As crianças acreditavam em lobisomens e os pais nos poderes do cinto de São Francisco. O número de relíquias era inumerável.

O ranço de tantas superstições subsistiu ainda entre os povos, mesmo depois que a
religião foi depurada. Dizem que quando o sr. de Noailles, bispo de Châlons, mandou retirar
do altar e lançar ao fogo a falsa relíquia do Santo Umbigo de Jesus Cristo, a cidade inteira de
Châlons se revoltou contra ele; porém, ele tinha tanta coragem quanta fé e finalmenteconseguiu fazer com que os habitantes da cidade acreditassem que podiam adorar Jesus Cristo em espírito e em verdade, sem precisar ter seu cordão umbilical dentro de uma igreja.

Aqueles que foram chamados de jansenistas não contribuíram pouco para desenraizar lentamente no espírito da nação a maior parte das falsas idéias que desonravam a religião cristã. O povo parou de acreditar que era suficiente rezar a Oração dos Trinta Dias à Virgem Maria não só para obter tudo o que se desejava, como também para poder pecar impunemente.

Por fim, a burguesia começou a suspeitar que não era Santa Genoveva que trazia ou fazia parar a chuva, mas que era o próprio Deus que governava os elementos. Os monges foram ficando espantados porque seus santos não faziam mais milagres; se os redatores da Vida de São Francisco Xavier retornassem ao mundo, não ousariam mais escrever que esse santo ressuscitara nove mortos, que ele aparecia ao mesmo tempo no mar e na terra e que, quando seu crucifixo caiu no mar, um caranguejo veio devolvê-lo.

O mesmo aconteceu com relação às excomunhões. Nossos historiadores nos contam que, na ocasião em que o rei Roberto foi excomungado pelo papa Gregório V pelo pecado de se ter casado com a princesa Berta, sendo esta sua comadre, seus criados jogaram pelas janelas os alimentos que deveriam ser servidos ao rei, e a rainha Berta deu à luz uma gansa como punição por esse casamento incestuoso. Hoje em dia, duvidamos tanto que os copeiros de um rei da França excomungado jogassem seu jantar pela janela quanto que a rainha trouxesse ao mundo um gansinho nessa mesma ocasião.

Se ainda existem os que tenham convulsões em algum lugar escondido em um bairro, é conseqüência da doença dos piolhos de que somente a populaça mais inferior é atacada hoje em dia. A cada dia a razão penetra mais fundo na França, das lojas dos comerciantes às mansões dos senhores. É preciso, portanto, cultivar os frutos dessa razão, tanto mais que agora já se tornou impossível impedir que despontem. Não se pode mais governar a França, depois que ela foi esclarecida por Pascal, por Nicole, por Arnauld, por Bossuet, por Descartes, por Gassendi, por Bayle, por Fontenelle etc., como ela era governada no tempo dos Garasse e dos Menot.

Se os mestres dos erros, e falo nos grandes mestres, pagos e honrados por tanto tempo para embrutecer a espécie humana, ordenassem hoje que deveríamos crer que o grão precisa apodrecer primeiro para depois germinar; que a Terra está imóvel em seus fundamentos e que ela absolutamente não gira ao redor do sol; que as marés não são um efeito natural da gravitação; que o arco-íris não é formado pela refração e reflexão dos raios luminosos etc., e se eles se baseassem em partes malcompreendidas das Santas Escrituras para apoiar suas ordenanças, como seriam encarados por todos os seres humanos instruídos? O termo bestas seria forte demais? E se esses sábios mestres empregassem a força bruta e a perseguição para fazer reinar sua ignorância insolente, o termo bestas sanguinárias estaria deslocado?

Quanto mais as superstições dos monges são desprezadas, mais os bispos são respeitados e os párocos tidos em consideração: estes só fazem o bem e as superstições monacais ultramontanistas já fizeram muito mal. De todas as superstições, porém, a mais perigosa não é a de odiar seu próximo em virtude de suas opiniões? E não é evidente que seria ainda mais racional que alguém adorasse um santo umbigo, um santo prepúcio, o leite e o manto da Virgem Maria do que detestasse e perseguisse seus irmãos?

Tratado sobre a Tolerância - VoltaireOnde histórias criam vida. Descubra agora