Quanto menos dogmas, menos disputas; e quanto menos disputas, menos infelicidades; se isso não é verdade, então o errado sou eu.
A religião foi instituída para nos tornar felizes nesta vida e na outra. O que é necessáriopara ser feliz na vida que há de vir? Ser justo.
Para ser feliz na vida atual, tanto quanto o permite a miséria de nossa natureza humana, o que é necessário? Ser indulgente.
Seria o cúmulo da loucura pretender levar todos os homens a pensar de maneira uniforme no terreno da metafísica. Será muito mais fácil subjugar o universo inteiro pela força das armas do que dominar todos os espíritos de uma única cidade.
Euclides conseguiu com bastante facilidade seu objetivo de persuadir todos os homens das verdades da geometria. Por quê? Porque não existe uma só delas que não seja um corolário evidente deste pequeno axioma: dois e dois são quatro. Mas não se passa absolutamente assim nessa mistura confusa que é formada pela metafísica e pela teologia.
Na época em que o bispo Alexandre e o padre Ário ou Arius começaram a disputar em torno da maneira segundo a qual o Logos era uma emanação do Pai, o imperador Constantino lhes escreveu imediatamente estas palavras registradas por Eusébio e por Sócrates: “Vocês são dois grandes tolos por estarem discutindo sobre coisas que não são capazes de entender”.
Se os dois partidos tivessem sido sensatos o bastante para reconhecer que o imperador tinha razão, o mundo cristão não teria sido ensangüentado durante trezentos anos.
Efetivamente, o que poderia ser mais tolo e mais horrível que dizer aos homens: “Meus amigos, não é suficiente que sejais súditos fiéis, filhos submissos, pais ternos, vizinhos cordiais, que pratiqueis todas as virtudes, que cultiveis a amizade, que fujais à ingratidão, que adoreis Jesus Cristo em paz: ainda é necessário que saibais como somos engendrados desde toda a eternidade. Se vós não sois capazes de distinguir o omousion dentro da hipóstase, nós declaramos que sereis queimados durante toda a eternidade, e que, enquanto esperamos por esse evento, vamos começar por matá-los”?
Se esse tipo de decisão fosse apresentado a Arquimedes, Possidônio, Varrão, Catão ou Cícero, o que eles teriam respondido?
Constantino não perseverou em sua resolução de impor silêncio aos dois partidos; ele poderia ter convocado os chefes da disputa para seu palácio; poderia ter indagado deles com que autoridade estavam perturbando o mundo: “Vocês têm as certidões da família divina? Que lhes importa que o Espírito Santo seja feito ou gerado, desde que sejam fiéis a ele, desde que preguem uma boa moral e que a pratiquem ao menos em parte? Eu cometi grande número de faltas em minha vida e vocês também; vocês são ambiciosos e eu também o sou; para conseguir o império, tive de praticar embustes e crueldades; assassinei quase todos os meus íntimos; estou arrependido disso; quero expiar meus crimes tornando o império romano um lugar tranqüilo; não me impeçam de fazer o único bem que poderia levar a esquecer minhas antigas barbaridades; ajudem-me a terminar meus dias em paz.” Mas talvez ele não tivesse conseguido ganhar dos disputantes; talvez sua vaidade fosse satisfeita ao presidir um concílio vestindo uma longa toga vermelha e uma grossa tiara de pedrarias na cabeça.
Eis aí o que abriu a porta a todos esses flagelos que vieram deste a Ásia para inundar o Ocidente. De cada versículo contestado brotou uma fúria armada de um sofisma e de um punhal, que tornou todos os homens insensatos e cruéis. Os hunos, hérulos, godos e vândalos que vieram depois praticaram infinitamente menos mal e a pior coisa que fizeram realmente foi deixarem-se converter e envolver nessas mesmas disputas fatais.

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Tratado sobre a Tolerância - Voltaire
No FicciónNa França, nas décadas anteriores à Revolução Francesa, Jean Calas, um comerciário protestante da cidade de Toulouse, foi acusado de assassinar o filho, que queria se converter ao catolicismo. A sentença foi a pena de morte, e a execução no suplício...