As mentiras vêm sendo impostas aos homens por um tempo longo demais: chegou a hora de conhecer algumas verdades que se pôde desvendar através dessas nuvens de fábulas que cobriram a história romana desde Tácito e Suetônio e que, quase sempre, envolveram os anais de outras nações antigas.
Como se poderia crer, por exemplo, que os romanos, esse povo grave e severo cujas leis ainda conservamos, tivessem condenado virgens de famílias distintas à prostituição, apenas porque eram cristãs? Isso revela um péssimo conhecimento da austera dignidade de nossos legisladores, que puniam tão severamente as fraquezas das vestais. Os Atos sinceros de Ruinart nos relatam essas torpezas; contudo, podemos acreditar nos Atos de Ruinart como cremos nos Atos dos Apóstolos? Os Atos sinceros dizem, de acordo com Bollandus, que na cidade de Ancira havia sete virgens cristãs, cada uma delas tendo em média a idade de setenta anos, e que o governador Teodecto as condenou a passar pelas mãos dos jovens da cidade; porém, uma vez que essas virgens tivessem sido poupadas, como seria de esperar, ele as obrigou a servir inteiramente nuas nos mistérios de Diana, aos quais, todavia, não era permitido a ninguém assistir sem a cobertura de um véu. São Teodoro – que, para se contar a verdade, era dono de um prostíbulo, mas que nem por isso era um cristão menos fervoroso – rogou a Deus ardentemente que fizesse morrer de boa morte essas santas mulheres por temor de que elas sucumbissem à tentação. Deus o atendeu: o governador mandou que fossem lançadas em um lago, cada uma com uma pedra atada ao pescoço; elas logo apareceram a Teodoro e lhe rogaram que não permitisse que seus corpos fossem comidos pelos peixes – foram suas próprias palavras.
O santo proxeneta e seus companheiros foram durante a noite até a beira do lago que estava sendo guardado por soldados; uma tocha celeste avançava sempre à sua frente e, quando chegaram ao lugar onde se achavam os guardas, um cavaleiro celeste, de armadura completa, expulsou os guardas com a lança em riste. São Teodoro retirou do lago os cadáveres das virgens; ele foi conduzido à presença do governador; e novamente o cavaleiro celeste surgiu para impedir que lhe cortassem a cabeça. Não cessaremos de repetir que veneramos os verdadeiros mártires, mas é bastante difícil acreditar nessa história de Bollandus e de Ruinart.
Será necessário repetir aqui o conto do jovem São Romano? Ele foi lançado ao fogo, segundo nos conta Eusébio; e os judeus que estavam presentes insultaram Jesus Cristo, porque deixou queimarem os que confessavam sua fé n’Ele, depois que Deus havia tirado Sadraque, Mesaque e Abede-Nego da fornalha ardente. Nem bem os judeus acabaram de falar, São Romano saiu triunfante da fogueira; o imperador ordenou que ele fosse perdoado e disse ao juiz que não queria ter nada a resolver com Deus: estranhas palavras na boca de Diocleciano! O juiz, apesar da indulgência do imperador, ordenou que cortassem a língua de São Romano e, ainda que tivesse os carrascos à sua disposição, mandou chamar um médico para executar essa operação. O jovem Romano, que nascera gago, passou a falar com volubilidade a partir do momento em que teve a língua cortada. O médico ficou com medo de ser castigado e, para demonstrar que a operação havia sido feita de acordo com as regras da arte, agarrou um passante e lhe cortou a mesma extensão de língua que havia cortado de São Romano, provocando a morte imediata do transeunte, “pois”, acrescenta sabiamente o autor da história, “a anatomia nos ensina que um homem sem língua não consegue viver”. Na verdade, se é que foi Eusébio quem escreveu semelhantes falácias, se estas não foram acrescentadas posteriormente a seus verdadeiros escritos, o que poderemos pensar da veracidade de sua História?
Recebemos a história do martírio de Santa Felicidade e de seus sete filhos, enviados à morte, segundo se conta, pelo sábio imperador Antonino, já em sua velhice, sem indicação do autor do relato.
É muito mais verossímil que algum autor mais ardoroso que verídico tenha desejado imitar a história dos Macabeus. A narrativa começa assim: “Santa Felicidade era romana e viveu sob o reinado do imperador Antonino”; de início, torna-se claro, pelo teor dessas palavras, que o autor não era contemporâneo de Santa Felicidade. Segue dizendo que o pretor os julgou em seu tribunal, situado no Campo de Marte; contudo, o prefeito de Roma tinha seu tribunal no Capitólio, e não no Campo de Marte que, depois de ter servido como sede dos comícios e assembléias, era empregado nessa época para exercícios dos soldados, corridas e jogos militares: só isso basta para demonstrar que o relato é suposto.
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Tratado sobre a Tolerância - Voltaire
No FicciónNa França, nas décadas anteriores à Revolução Francesa, Jean Calas, um comerciário protestante da cidade de Toulouse, foi acusado de assassinar o filho, que queria se converter ao catolicismo. A sentença foi a pena de morte, e a execução no suplício...