Pós-escrito

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Enquanto trabalhávamos nesta obra, com o único desígnio de tornar os homens mais compassivos e mais amáveis, um outro homem escrevia com um propósito totalmente contrário: pois cada um tem sua opinião. Esse homem mandou imprimir um pequeno código da perseguição, intitulado O acordo entre a religião e a humanidade(este último deve ser um erro do impressor: leia-se a desumanidade).

O autor do santo libelo se apóia em Santo Agostinho, o qual, depois de pregar a cordialidade por tanto tempo, acabou por pregar a perseguição, considerando que nessa ocasião ele era o mais forte e que mudava de opinião com bastante freqüência. Ele cita também o bispo de Meaux, Bossuet, que perseguiu o célebre Fénelon, arcebispo de Cambrai, culpado de ter mandado imprimir que vale a pena amar a Deus por amor d’Ele mesmo.

Bossuet era eloqüente, admito; o bispo de Hipona, algumas vezes inconseqüente, se expressava melhor do que os outros africanos, também o admito; contudo, tomarei a liberdade
de dizer ao autor desse santo libelo o mesmo que falou Armande na peça As Eruditas:
Quando pretendemos tomar uma pessoa por modelo,
devemos nos assemelhar a seus melhores aspectos.
(Ato I, Cena I)

Eu direi ao bispo de Hipona: “Cavalheiro, o senhor mudou de opinião; permita-me permanecer de acordo com sua opinião inicial. Na verdade, acho que é a melhor.”

Eu direi ao bispo de Meaux: “Monsenhor, sois um grande homem: eu vos considero pelo menos tão sábio quanto Santo Agostinho e bem mais eloqüente do que ele; mas por que atormentar tanto o seu confrade, que foi tão eloqüente quanto vós, se bem que em outro gênero, e que era muito mais amável?”.

O autor do santo libelo sobre a desumanidade não é nem um Bossuet, nem um Agostinho. Segundo me parece, daria um excelente inquisidor; gostaria que ele fosse para Goa a fim de encabeçar o belo tribunal que eles têm por lá. Além disso, ele é um estadista e proclama grandes princípios de política: “Se existirem entre vós”, diz ele, “muitos heterodoxos, controlai-os, persuadi-os; se houver somente um pequeno número, empregai o pelourinho e as galeras, e o resultado será bastante bom”. Pelo menos é o que nos aconselha nas páginas 89 e 90.

Pela graça de Deus, eu sou um bom católico e não tenho nenhum motivo para temer o que os huguenotes chamam de martírio; porém, se esse homem alguma vez chegar a primeiro- ministro, como ele parece se gabar em seu próprio libelo de que se tornará, eu o advirto de que partirei para a Inglaterra no dia em que ele receber a portaria de sua nomeação.

Enquanto espero, só posso agradecer à Providência porque ela permite que gente da sua espécie seja sempre de fraco raciocínio. Ele chega a citar Bayle entre os partidários da intolerância, o que é sensato e verdadeiro. No entanto, a partir do fato de que Bayle concorda que é necessário castigar os sediciosos e os velhacos, nosso homem conclui que é necessário perseguir a ferro e fogo pessoas pacíficas e de boa-fé.

Quase todo o seu livro é uma imitação da Apologia do São Bartolomeu. Ou ele é esse apologista, ou seu eco. Em qualquer dos casos, é de se esperar que nem o mestre nem o
discípulo jamais venham a governar o Estado.

Todavia, se calhar que eles se tornem os senhores, eu lhes apresento, com a devida vênia, este requerimento, referente a duas linhas da página 93 do santo libelo:

“É necessário sacrificar à felicidade de um vigésimo da nação o bem-estar de uma nação inteira?”

Suponhamos que, efetivamente, haja vinte católicos romanos na França para cada huguenote; eu não pretendo que o huguenote vá devorar os vinte católicos; mas por que esses vinte católicos deveriam devorar o huguenote e por que impedir esse huguenote de se casar?

Não existem abades, bispos e até monges que possuam terras no Delfinado, no Gévaudan, ao
redor de Agde, nas cercanias de Carcassonne? Esses bispos, esses abades, esses monges não têm entre seus camponeses alguns que têm a infelicidade de não acreditar na
transubstanciação? E não é do interesse desses bispos, desses abades, desses monges e do público em geral que esses camponeses tenham famílias numerosas? Será apenas àqueles que comungam com uma única espécie permitido fazer filhos? Na verdade, isso não é nem justo
nem decente.

“A revogação do Édito de Nantes não produziu absolutamente os inconvenientes que lhe são atribuídos”, diz o autor.

Se efetivamente se lhe atribui mais do que ela produziu, exagera-se, e o erro de quase todos os historiadores é mesmo exagerar, mas também é o erro de todas as controvérsias reduzir a nada o mal que se reprova. Não devemos acreditar nem nos doutores de Paris nem nos pregadores de Amsterdã.

Vamos tomar como juiz o conde d’Avaux, embaixador na Holanda de 1685 a 1688. Ele diz, na página 181 de seu Tomo V, que um único homem se havia oferecido para descobrir o paradeiro de mais de vinte milhões que os perseguidos haviam trazido consigo ao saírem da França. Luís XIV respondeu ao conde d’Avaux: “As informações que recebo todos os dias sobre um número infinito de conversões não me deixam dúvida de que os mais teimosos acabarão por seguir o exemplo dos outros”.

Vemos, de acordo com essa carta de Luís XIV, que ele tinha total boa-fé quanto à extensão de seu poder. Diziam-lhe todas as manhãs: “Sire, vós sois o maior rei do universo; será a glória do universo inteiro pensar da mesma forma que vós, logo que tenhais falado”.

Pellisson, que enriqueceu no cargo de primeiro comissário das finanças; Pellisson, que estivera três anos na Bastilha como cúmplice de Fouquet; Pellisson, que fora calvinista e se transformara em diácono e titular de benefícios eclesiásticos, que mandava imprimir rezas para as missas e buquês para Íris, que tinha obtido o cargo de ecônomo e de conversor; Pellisson, digo eu, trazia ao rei a cada três meses uma grande lista de abjurações, pelas quais recebia sete ou oito escudos por cabeça e fazia seu rei acreditar que, quando ele lhe ordenasse, converteria todos os turcos pelo mesmo preço. Os cortesãos se revezavam em enganá-lo: como ele poderia resistir à sedução?

Entretanto, o mesmo conde d’Avaux comunica ao rei que alguém chamado Vincent mantém mais de quinhentos operários perto de Angoulême e que sua saída causará prejuízos: Tomo V, página 194.

Ainda o conde d’Avaux fala de dois regimentos que o príncipe de Orange já organizou com oficiais franceses refugiados; fala de marinheiros que desertaram de três navios para servir na armada do príncipe de Orange. Além desses dois regimentos, o príncipe de Orange formou uma companhia com jovens refugiados de famílias nobres, comandados por dois
capitães: página 240. Esse embaixador escreve ainda, a 9 de maio de 1686, ao sr. de Seignelai, “que não lhe pode dissimular a pena que lhe dá ao ver as manufaturas francesas se estabelecendo na Holanda, de onde elas não sairão nunca mais”.

Junte-se a todos esses testemunhos os de todos os intendentes do reino durante o ano de 1699 e julgue-se se a revogação do Édito de Nantes não produziu mais mal do que bem, apesar da opinião do respeitável autor de O acordo entre a religião e a desumanidade.

Um marechal da França, conhecido por seu espírito orgulhoso, disse há alguns anos: “Eu não sei se aquela operação foi ou não necessária, mas é necessário que nunca mais se repita”.

Admito que posso ter ido um pouco longe demais ao tornar pública a carta do correspondente do padre Le Tellier, na qual esse membro da congregação dos jesuítas propõe o emprego de barris de pólvora. Comecei a dizer a mim mesmo: “Mas não vão me acreditar; vão dizer que essa carta foi uma falsificação”. Porém, meus escrúpulos felizmente se desfizeram quando li em O Acordo entre a religião e a desumanidade, página 149, estas doces palavras:

“A extinção total dos protestantes franceses não enfraquecerá mais a França do que uma sangria enfraquece um doente bem-constituído.”

Esse cristão compassivo, que mal acabara de dizer que os protestantes constituíam um vigésimo da nação, quer que se derrame o sangue dessa vigésima parte e não considera tal operação mais grave que a retirada de uma ampola de sangria!... Deus nos preserve dele se forem três vigésimos!...

Se, portanto, esse homem corajoso propõe matar a vigésima parte de uma nação, por que o amigo do padre Le Tellier não poderia ter proposto lançar pelos ares, degolar e envenenar um terço? É, portanto, extremamente verossímil que a carta dirigida ao padre Le Tellier realmente tenha sido escrita.

O santo autor por fim conclui que a intolerância é algo excelente, “porque ela não foi”, declara ele, “condenada expressamente por Jesus Cristo”. Mas Jesus Cristo tampouco condenou aqueles que acenderam incêndios nos quatro cantos de Paris: isso é razão para canonizar os incendiários?

Desse modo, quando a natureza faz ouvir de um lado sua voz doce e benfazeja, o fanatismo, esse inimigo da natureza, se põe a uivar; e tão logo a paz se apresenta aos homens, a intolerância forja suas armas. Oh vós, árbitro das nações, que nos concedestes a paz na Europa, decidi entre o espírito pacífico e o espírito mortífero!...

Tratado sobre a Tolerância - VoltaireOnde histórias criam vida. Descubra agora