Um cidadão encontrava-se na agonia em uma cidade da província; um homem de boa saúde veio insultá-lo em seus últimos momentos e lhe disse:
– Infeliz! Pensa como eu agora: assina este documento, confessa que existem cinco proposições em um livro que nem tu nem eu jamais lemos; assume agora as opiniões de Lanfranc contra as de Bérenger, as idéias de São Tomás de Aquino contra as de São Boaventura; abraça as resoluções do Segundo Concílio de Nicéia contra o Concílio de Frankfurt; explica-me neste instante como estas palavras “Meu Pai é maior do que eu” significam expressamente “Eu sou tão grande quanto Ele”. Explica-me agora como o Pai comunica tudo ao Filho, exceto a paternidade, ou eu vou mandar jogar teu cadáver no depósito de lixo; teus filhos não herdarão teus bens, tua mulher será privada de sua pensão e tua família vai mendigar um pedaço de pão, porém os meus semelhantes não lhes darão nada.
O MORIBUNDO – Mal consigo entender o que estás me dizendo; as ameaças que me fazes chegam confusamente a meus ouvidos, mas elas perturbam minha alma e tornam horrível minha morte. Em nome de Deus, tem piedade de mim.
O BÁRBARO – Piedade! Não posso ter piedade de ti se não concordares com minhas opiniões em todos os detalhes.
O MORIBUNDO – Ai de mim! Não percebes que, nestes momentos derradeiros, todos os meus sentidos estão enfraquecidos, todas as portas de meu entendimento estão fechadas, as idéias fogem de minha cabeça, meus pensamentos desaparecem? Estou em condições de discutir?
O BÁRBARO – Está bem, se tu não és capaz de crer no que eu quero, diz que acreditas e para mim será o suficiente.
O MORIBUNDO – Como posso cometer perjúrio para agradar a ti? Dentro de um momento vou comparecer perante o Deus que castiga os perjuros.
O BÁRBARO – Isso não importa; terás o prazer de ser enterrado em um cemitério e tua mulher e teus filhos terão com que viver. Morres hipócrita; a hipocrisia é uma coisa boa; é, como já foi dito, uma homenagem que o vício faz à virtude. Um pouco de hipocrisia, meu amigo, que é que isso te custa?
O MORIBUNDO – Ai de mim! Desprezas Deus ou então não o reconheces, porque estás a pedir-me uma mentira em artigo de morte, logo tu que em breve serás julgado por Ele e que terás de responder por essa mentira.
O BÁRBARO – Como, insolente!? Eu não reconheço a Deus?
O MORIBUNDO – Perdão, meu irmão, mas eu temo que nem sequer O conheças. Aquele a Quem eu adoro reanima neste momento minhas forças para dizer-te em minha voz moribunda que, se acreditas em Deus, deves demonstrar caridade para comigo. Foi Ele que me deu minha esposa e meus filhos, e tu desejas fazê-los perecer na miséria. Quanto a meu corpo, podes fazer o que bem te parecer; eu o abandono em tuas mãos, mas eu te conjuro a crer em Deus.
O BÁRBARO – Faz, sem raciocinar, o que te digo: é o que eu quero e é o que te ordeno.
O MORIBUNDO – E qual teu interesse em me atormentar tanto?
O BÁRBARO – Como? Que interesse? Se eu conseguir a tua assinatura, vou obter uma boa posição canônica.
O MORIBUNDO – Ah, meu irmão! Chegou meu último momento; vou morrer e rogarei a Deus que toque teu coração e te converta.
O BÁRBARO – Que vá para o diabo esse teimoso que não quis assinar! Pois eu vou falsificar a sua assinatura e assinar em seu lugar.
A carta seguinte é uma confirmação da mesma moral.
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Tratado sobre a Tolerância - Voltaire
No FicciónNa França, nas décadas anteriores à Revolução Francesa, Jean Calas, um comerciário protestante da cidade de Toulouse, foi acusado de assassinar o filho, que queria se converter ao catolicismo. A sentença foi a pena de morte, e a execução no suplício...