Leia ouvindo a música 5: David Garrett - Bitter Sweet Symphony
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Que isso não caia! Que isso não caia!
Essas palavras se repetem em minha cabeça feito um papagaio enquanto o avião chacoalha, fazendo-me sentir em uma espécie de liquidificador aéreo sem tampa. Parece que serei lançada para fora a qualquer instante.
Quinze minutos atrás, quando o comandante anunciou no interfone que atravessaríamos uma tempestade e teríamos instabilidade, ninguém deu muita bola. O senhor ao meu lado até arqueou as sobrancelhas e fez um comentário tranquilo: "ah, esses pilotos, sempre tentando nos amedrontar". Ele parece bastante amedrontado, agora. Como todo mundo dentro do avião. E não ajuda muito as comissárias passando pelo corredor às pressas, com cara de pânico e se apoiando nos encostos das poltronas para não cair...
Travo as mãos nas laterais do assento e fecho os olhos enquanto tento organizar uma lista mental dos motivos pelos quais não posso morrer ainda, tão jovem. Espero que alguma divindade me ouça...
Eu juro, juro que nunca mais vou falar mal da vizinha irritante que anda de salto toda noite no andar de cima. E prometo que vou me estressar menos com a bagunça que Otto faz na minha cozinha, com os latidos de Freud pela manhã...
Freud! Nem me despedi direito dele... ah, se eu soubesse que morreria hoje, eu o teria deixado comer queijo. Ele ama queijo. Nem pude dar uma última refeição decente para o meu cachorro, e Otto nunca vai se lembrar que ele adora isso...
Outra sacolejada me faz pular no banco. Se eu não estivesse com o cinto de segurança, já teria batido a cabeça no teto com a maior facilidade. Sinto algo prender meu braço e vejo que a pulseira que Otto me deu acaba de puxar um fio da blusa, mas estou sem a menor disposição de soltá-la dali. Dane-se! Se essa porcaria cair, não vai sobrar pulseira alguma, muito menos uma blusa desfiada.
Fecho os olhos e embarco em uma prece desesperada: meu Deus, eu sei que pedi pra não ouvir mais o nome dos meus ex-namorados pelo resto da vida, mas não terá vida alguma se eu espatifar daqui de cima. Então, por favor, não deixe isso cair. Será que dá tempo de mudar de pedido? Pode mandar quantos Andrés ou Édens quiser, juro que não vou ligar, combinado? Espero que dê tempo de voltar atrás. E, olha, se esse é um alerta por eu estar cometendo algum erro ou sendo realmente carente e sem sal, marinando por aí, prometo que vou mudar. Vou me esforçar para me divertir mais e aproveitar a vida. Eu garanto que só vou dizer sim. Sim, sim, SIM!, emendo em pensamento, encarando a pulseira destruidora de blusas.
Ouço alguém rezar atrás de mim e tenho a impressão de que vou vomitar ou desmaiar a qualquer instante caso essa situação persista por mais tempo. Tento pensar positivo, evocar um dos exercícios de respiração que aprendi na terapia, mas é em vão. Não consigo me concentrar em nada. Meu único pensando é: essa desgraça vai cair!
Mas não caiu. Ufa!
Quando pousamos no Aeroporto Internacional de Miami, preciso controlar minha súbita vontade de gritar de alegria não parecer uma louca. Mal consigo dar conta de atravessar o corredor estreito entre as poltronas; minhas pernas estão trêmulas, e todo mundo à minha volta está com cara de quem acaba de ver alguém ressuscitar dos mortos. Nesse caso, uma ressurreição coletiva. Como vou fazer para embarcar em outro voo como este, não faço a menor ideia.
Ao sair da aeronave, vejo o céu totalmente nublado, com nuvens espessas e escuras. O vento quase me carrega quando desço a escadinha metálica com minha bolsa de mão, os cabelos desgrenhados chicoteando meu rosto. Uma verdadeira cena de filme de terror. Otto certamente daria tudo para ter uma foto desse momento para fazer piada para o resto de nossas vidas, mas garanto que, se ele estivesse aqui, não teria evitado o encontro romântico com o chão aos nossos pés.
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Uma mentira (im)perfeita [DEGUSTAÇÃO]
RomanceOi, meu nome é Nina (ou melhor... Marina). Eu sou violinista em uma orquestra famosa (#SóQueNão, sou do mundo corporativo e estou prestes a assumir a empresa do meu pai). Sou uma taurina que ama aventuras (... pela tv, no aconchego do sofá da sala...