Capítulo 3 - Marinar?

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Leia ouvindo a música 3: Chuva de arroz Piano Violino Percussão Casamento Grupo Trítono

***

Chego em casa exausta. Minha mente parece muito mais cansada do que meu corpo, mas não posso deixar de sentir aquele prazer em tirar os sapatos apertados depois de um longo dia de trabalho. Ainda sinto resquícios da noite trágica de ontem, então não quero fazer mais nada hoje.

Freud, meu Yorkshire de três anos, demora a vir ao meu encontro, o que me faz indagar se ele estava aprontando alguma no meu quarto. Brinco com ele, mas sei que fez merda, então vou até o quarto e, bingo: vejo o papel higiênico enfeitando o chão desde o banheiro até a minha cama. Conheço bem demais meu cachorro. Só queria ter com os homens pelo menos um quinto do desconfiômetro que tenho com o Freud.

— Poxa, Freud. Hoje não é o melhor dia para isso, né? — ralho com ele, mas a cara fofa não me deixa continuar. Em vez disso, afago as orelhinhas, ele abana o rabo de alegria com a certeza de que, como sempre, me dobrou e se livrou do castigo. Zero pulso firme. Sou uma péssima mãe.

Saio catando todos os papéis que vejo pela frente e jogo no lixo. Suspiro, incomodada, e decido deixar para organizar as coisas depois de um banho, eu mereço pelo menos alguns minutos de descanso. Tiro a roupa, coloco tudo no cesto e guardo os sapatos no armário. Detesto deixar coisas espalhadas pela casa. Enfim, entro no chuveiro e deixo a água invadir meu corpo sem pressa.

Ou pelo menos é a ideia, antes de ouvir a campainha tocar duas vezes seguidas.

Otto.

Bufo. Não acredito que ele esqueceu as chaves outra vez! Apesar de morar apenas três andares acima do meu, Otto adora chegar do trabalho e dar uma paradinha aqui, seja para comer ou para falar de alguém.

Enrolo-me na toalha para sair do banheiro, algo que ninguém entende. Todo mundo fala que morar sozinho é a chave secreta para andar sem roupa pela casa, mas eu absolutamente não nasci para isso. Tenho certa resistência porque sempre acho que alguém vai invadir minha casa, assaltar, vai ter um incêndio, qualquer desastre, e terei que sair correndo sem roupa. Com a sorte que tenho, a próxima manchete da Pessoas Influentes será comigo outra vez, só que um flagrante de Marina Portella nua e constrangida.

Abro a porta e encaro meu melhor amigo que, diferente de mim, sorri empolgado.

— Graças a God! Onde você estava? — ele pergunta, passando por mim sem pedir licença nem me cumprimentar. É nosso nível de intimidade. — Te liguei várias vezes e nada. Você jogou a bomba e sumiu, achei que te encontraria morta, ou pior, presa!

Ele anda com os sapatos sociais imundos de rua no meu tapete cinza e se joga no sofá bege. O cheiro amadeirado do seu perfume preenche minha sala.

— Cadê a chave que eu te dei? — Balanço a cabeça, tentando ignorar aquela falta de higiene e confusão no meu apartamento.

— Deve estar no outro chaveiro. — Ele dá de ombros. — Você está bem?

Baixo a guarda ao ouvir a pergunta e encaro meu amigo de tantos anos. Ele está usando uma camisa social rosa clara e calça jeans escura. Dei essa blusa de presente em seu último aniversário e amei o contraste com sua pele negra.

— Tive um pequeno contratempo no meu dia, mas já voltei ao normal.

— Não creio que me deixou pilhado o dia inteiro de preocupação por causa de um momento conturbado. Nem vem! Aí tem coisa, e você vai me contar o que é! Foi sua -drasta? Não cometeu nenhum crime, né? — Otto brinca. A gente sempre fala que, de todas as insanidades do mundo, cometer um crime é algo que nunca poderemos fazer. Segundo ele, não sobreviveríamos nem uma semana na cadeia, e com todas as minhas manias e o comportamento implicante dele, isso faz muito sentido.

Uma mentira (im)perfeita [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora