Dinha

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Eu sempre pensei que depois que se meu pai morresse, eu viveria em paz com a minha mãe. Meu coração tava destruído pelo fato dele ter se matado, mas me estranhava o alívio que eu sentia. A única coisa que ele fazia era surtar, quebrar a casa e bater na minha mãe. Agora, eu tenho que vir a esse consultório para falar com a minha psicóloga toda sexta, depois do dia mais chato da escola. Que bosta! Ela me olha com essa cara de sonsa. Todos os problemas que eu conto pra ela, sem reação, perguntas vazias e respostas vagas. Depois de um tempo, o consultório fica quieto, ela me olha e só ouço esse relógio. Tique-taque, tique-taque. Que saco.

— O que você está pensando, Urda? — perguntou a doutora.

— Eu tô pensando na escola, doutora Márcia.

— Como foi na escola? Ainda odeia as aulas de Física e a escola tanto assim?

Como eu poderia não odiar a escola, o meu nome esquisito, que me rendeu bullying por anos, e o alcoolismo repentino da minha mãe, de uma hora para outra. Queria dizer isso, mas eu simplesmente respondi o que eu sempre falava pra doutora:

— Eu ainda tô tentando, sabe. Eu ainda sinto falta do primeiro ano do médio.

— É um novo período na sua vida. Essas adaptações ainda podem demorar. Tudo é um processo. Por hoje, a nossa consulta fica por aqui. Até semana que vem. — disse a doutora anotando num caderno.

Eu me despeço da doutora fingindo um sorriso, como se aquela baboseira toda de processos e tals me fizesse alguma coisa de bom. Cada vez que eu abria a boca, pior eu me sentia comigo mesma. Como podem chamar isso de terapia?

Na saída do consultório, eu encontro a minha mãe tentando fingir sobriedade. Tentando fingir que não tava chorando, que não tava bebendo, que não tava surtada pelo meu pai ter tirado a própria vida. Por que ela não faz a terapia? Eu entro no carro e a mesma pergunta vem:

— Boa tarde, querida. Como foi com a Márcia?

— Legal.

Era só isso que bastava pra minha mãe ficar na dela, depois de me pegar no consultório: Legal. Queria que isso funcionasse pra outras pessoas, outras situações. O professor Hugo vem falar de cinemática e eu dizia; Legal, daí ele calava aquela bocona irritante dele. Até a chamada era estranha; Urda da Silva. Que puta combinação estranha. O avô da minha mãe veio da Dinamarca, ele queria esse nome pra minha mãe que nasceu lá também, mas a minha avó não gostava do nome, então sobrou pra mim. Minha avó a dona Jé, de Jéssica Schneider, tinha ido pra Dinamarca quando era jovem e voltou para cá com meu avô; o seu Pê de Per Denner. Eu gosto deles e quando meu pai surtava, eu ia pra casa da vó Jé, ouvir aqueles discões de vinil de rock pesado que meu avô coleciona. A casa deles era enorme e o meu avô tinha um quarto só para guardar esses discos, meu castelo não tão particular. Ele me ensinou a colocar a agalha pra tocar os discos depois que eu risquei uma edição limitada dele. Eu ficava por horas viajando naqueles sons e tentando tirar as musicas na guitarra do meu avô. Ele me ensinou a tocar muitas músicas, enquanto a minha avó trazia brigadeiro. De alemã a vó Jé não tinha nada além de ser polaca e filha de alemão. Agora, meu vô era estranho, sotaque estranho, mas gente boa. Eu flagrava a pena que eles sentiam de mim só de olhar pra cara polacona deles. Eu fingia que tava tudo bem. Coisas assim. Eu tava na bad, pensando nos meus avós, daí eu vejo o nosso portão e o carro na entrada, enquanto o portão eletrônico abria.

— Dinha, me ajude com as compras, por favor.

— Pode dexá.

Dinha era mais natural, era Urdinha antes, mas eu prefiro Dinha mesmo. A herança do meu pai; meu apelido. Eu via ele dois meses tranquilo e depois era aquele inferno e logo vinham os internamentos. Queria sentir mais a falta dele, mas num conseguia. Lá ia eu pegar as sacolas ecológicas de pano do mercado, mas só as que ela dava. As que tinham as garrafas de vodca ela não deixava pegar. Tudo bem, eu só tinha que entrar no meu quarto depois do jantar. Ai eu ia entrar na minha "bolha". A doutora falava que eu me colocava numa bolha como mecanismo de defesa. Eu acho que é mais pra ficar de boa, eu falava ficar de bolha só pra zoar. Minha mãe abria a porta e a gente ia entrando naquela casa bem mobiliada, moderna, bem decorada, cheia de coisas, enorme e tão... vazia. Ainda bem que meu pai não tinha morrido ali. Era isso que eu pensava daquela casa, era só isso.

Dinha e LanaOnde histórias criam vida. Descubra agora