Nos momentos de folga a mãe de Ricardo ficava em casa pintando telas com tinta a óleo, ocupada e distante demais para ser distraída com bobagens. O dia a dia no Fórum era corrido e ainda tinha toda a papelada do escritório, a pintura acabou surgindo e se mantendo como hobby desde a morte de seu esposo.
Ricardo geralmente ficava trancado no quarto ou inventava uma desculpa para sair de casa nos piores dias, e esse era um desses dias, Domingo de Páscoa. Quando levantou da cama e foi tomar o café da manhã, deparou-se com ela no meio da sala, observando uma enorme tela em branco, cercada de tintas, pincéis e esponjas que estavam jogados em cima da mesa. Ele não podia deixar de lembra-la de sua existência, era divertido irrita-la.
- Bom dia, mãe!
Não houve resposta e isso era normal, ele já estava acostumado com esse comportamento indiferente.
- Preciso falar com você sobre uma coisa, sexta passada me senti mal na escola e acabei procurando um médico pra saber o que era, fiz um exame de sangue que indicou Diabetes tipo 1.
- O médico falou que existe um fator hereditário nessa doença, mas você nunca me disse que tinha alguma coisa desse tipo. Então será que o papai...?
Como se tivesse despertado de um transe profundo ao ouvir essas últimas palavras, sua mãe de forma grosseira respondeu:
- Eu não posso acreditar! Até pra isso seu pai é um imprestável, nem genes
bons. Obviamente que isso só podia vir da parte dele, porque eu e minha família somos completamente saudáveis!Ricardo a olhava com desprezo, todos falavam bem do seu pai, menos ela. Sempre que tinha oportunidade, sua mãe fazia questão de enumerar os defeitos do ex-marido. Com o tempo falar do Dr. Armando perto dela tornou-se proibido, algo quase ilegal. Já fazia quase 9 anos que ele havia morrido, suicídio. Ricardo sofreu muito, mas ninguém notava pois a atenção estava sempre voltada para ela.
- Sabe mãe, isso não é uma disputa, o cara já morreu e você sempre que tem
oportunidade o menospreza, é como chutar cachorro morto.- Morreu porque quis, tinha uma vida ótima, confortável e feliz. Se quisesse mesmo estava aqui até hoje.
- Me parece que não era tão feliz assim, mãe...
- Olha, Ricardo... Eu no seu lugar seria uma pessoa muito grata a mim. Eu poderia ter me matado também e aí quem você teria para te dar essa vidinha confortável que você leva? Sorte sua que eu não sou covarde como seu pai!
Ele não entendia o motivo desse ódio incondicional que sua mãe nutria. Sem poder aceitar o rumo que a conversava estava tomando, aqueles insultos gratuitos e lembrando de todos os momentos em que ela ofendeu a memória de seu pai, Ricardo apertou os dentes, cerrou os punhos e, num impulso violento, virou a mesa do centro da sala fazendo voar tintas, pincéis e esponjas. A tela branca se partiu ao meio, assim como se partia naquele momento a vida de Ricardo.
Ao sair da sala, batendo a porta mal podia imaginar o que aconteceria. Sua mãe que viu naquele comportamento agressivo a desculpa que precisava para se livrar de vez do filho, em instantes já estava em ligação ajustando detalhes da ida do rapaz para o Colégio Stowe, um internato na Inglaterra.
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O melhor lugar é onde você quer estar!
Fiksi RemajaDois adolescentes, deslocados de suas realidades, resolvem juntos fugir de casa. Uma narrativa sobre os desafios da vida adolescente, sobre famílias que precisam repensar a forma como lidam com seus filhos, mas principalmente, uma história que mostr...