Do topo da Colina dos Desolados ouviu-se o retinir de um martelo sobre o metal. Fumaça negra exalando de uma pequena chaminé de forja, dia e noite, incessantemente há vários ciclos lunares.
O local fora da cidade era ermo, longe das principais estradas por onde as caravanas de comércio transitavam e por isso mesmo chamou a atenção dos poucos pastores e caçadores que eventualmente passavam pela região.
Um velho mas fisicamente intimidador aska era o ferreiro do inusitado estabelecimento. Apesar da aparência, sempre que solicitado realizava pequenos trabalhos em metal como pontas de flechas, ferraduras ou enxadas para os moradores mais próximos, que não se encontravam a menos de um dia inteiro de cavalgada.
Mesmo assim alguns dispunham-se à isso, pois a fama que corria na região era de que o aska não cobrava pelos serviços, embora aceitasse qualquer oferta em alimentos, madeira ou peles. E a única exigência que fazia é que ninguém permanecesse à noite naquelas terras.
Estes homens rústicos do campo eram sábios o suficiente para não fazerem muitas perguntas ao ferreiro, mas relatos de desavisados viajantes davam testemunhos de que as batidas do martelo à noite eram acompanhadas por um tenebroso eco de gritos que pareciam vir do além. Talvez essas histórias tivessem origem no fato da Colina dos Desolados ter recebido esse nome justamente por ser um antigo cemitério dos askas, que antes não podiam ser sepultados nos arredores da grande cidade de Kamin.
Outros ainda contavam que durante as tempestades todos os relâmpagos pareciam descer na direção da colina, o ecoar do martelo juntava-se ao ribombar dos trovões, e era como se o proprio deus dos ventos estivesse forjando algo naquela bigorna. E foi durante uma dessas tempestades especialmente intensa, tendo durado três dias seguidos, que o som do martelo foi ouvido pela última vez no topo da colina.
Quando os primeiros pastores passaram pelo local após a tormenta, ficaram pasmados ao constatar que toda a vegetação, de gramas às arvores, estavam mortas e ressequidas de alto a baixo da colina. A chaminé da cabana não mais lançava sua fumaça negra para o céu, mesmo assim por muitos dias ninguém teve coragem de subir até o topo e conferir o destino do ferreiro.
***
Na lua seguinte um grupo de askas surgiu diante dos portões de Kamin, à sua frente um que parecia ser o líder portava um imenso machado. Os dois lados de sua lâmina tinham a forma de um perfil de rosto humano, um parecia triste e o outro furioso. Além disso o artefato brilhava num azul intenso ao refletir a luz da lua e das tochas.
Era o último dia da festa de Marami a deusa da fartura, o dia da oferta. A cidade estava cheia, mas a maioria da guarnição estava na praça central e muitos outros haviam sido dispensados para os festejos. Ninguém em Kamin imaginaria que a cidade sofreria um ataque naquela noite. Ninguém seria tão tolo de enfrentar a fúria da deusa, não no dia em que ela vem em sua forma física, pessoalmente receber suas ofertas.
Mas ao primeiro golpe do machado, os portões que possuiam a altura de dois cavalos cada, cairam por terra. O primeiro passo dos invasores foi atacar o arsenal, e apesar da sua desvantagem numérica, esses guerreiros lutavam como falam as lendas do tempo em que seu povo possuía exércitos e um império no continente ao sul. A guarnição foi pegue de surpresa e subjugada em instantes, suas armas entregues aos askas que habitavam na cidade e estes juntaram-se aos invasores.
O caos se instaurou enquanto o grupo massacrava todo e qualquer vivente em seu caminho em direção à praça central, juntando-se aos seus que ali estavam para a oferta. O líder com seu tenebroso machado parecia especialmente cruel em relação aos sacerdotes de Marami, tendo feito alguns prisioneiros dentre eles, mas trucidando pessoalmente a maioria e depositando seus corpos despedaçados em uma trilha, que se estendeu desde o poço da deusa no centro da praça, até ao alto dos cento e cinquenta degraus da entrada seu templo na outra extremidade.
Postado no topo da escadaria de mármore branco, tingida agora de sangue como se fosse um tapete, e empunhando sua arma em posição desafiadora, ele dá um sinal a seus companheiros abaixo na praça. Em seguida estes emeaçam os sacerdotes sobreviventes e exigem que eles executem o ritual de oferta como era de sua função. Os quarenta reféns ainda amedrontados formam um círculo ao redor do poço da deusa e recitam o cântico de invocação.
O massacre dos invasores cessou naquele instante e todos aqueles que quiseram fugir da cidade não mais foram molestados por eles. Outros, temerosos demais para abandonar seus esconderijos, ainda testemunharam os próximos acontecimentos. Toda a praça começou a tremer ao fim da cantoria, e após confirmação de que o ritual tinha sido finalizado, o líder deu uma nova ordem e todos os sacerdotes restantes foram atirados vivos ao fundo do poço e seus gritos de desespero silenciados em um breve instante. Naquele momento a figura de Marami começou a despontar do mesmo local.
A medida que sua gigantesca e majestosa forma se revelava, muitos dos invasores aska vacilam sobre as próprias pernas, abandonando a praça amedrontados. Os cidadãos que ainda permaneciam na cidade foram tomados de um renovado ânimo e muitos foram mesmo até as ruas recitando publicamente o cântico da deusa.
Mas o líder dos askas parecia esperar por isso e continuava impassível, enquanto do machado emanava uma luz tão intensa que era impossível olhar diretamente para a lâmina. Marami seguiu em direção ao templo parando na base da escadaria, sua cabeça atingia a mesma altura do topo e por um instante ela encarou o responsável por toda aquela carnificina parecendo sorrir.
Ela trocou algumas palavras no próprio idioma do invasor, mas ele de maneira ensandecida bradou forte como um trovão naquele dia e suas palavras ecoaram por toda a cidade, palavras que até hoje causam temor aos descendentes dos homens que habitavam em Kamim e na península da Rocha Dourada:
"Betta eru módur tár fyrir barnid sitt."
Apos isso, num feito de força sobrenatural ele saltou varando a distância de toda a escadaria e cravando seu machado em um dos olhos de Marami. A deusa deu um passo para trás ao ser atingida, porém logo em seguida agarrou o aska pelas pernas e o arremessou com toda força no meio da escadaria despedaçando vários degraus. Seu corpo rolou até a base parando já sem vida aos pés de Marami.
A deusa sorriu novamente mas sua comemoração mostrou-se precipitada. Do machado ainda cravado em seu corpo começaram a despontar diversos fios de uma luz pálida pairando ao redor de Marami e atirando-se em seu corpo como os falcões ao mergulhar sobre a presa. Cada vez que era atravessada dessa forma a deusa emitia um grito de dor que estremecia novamente a praça. Seus inúmeros braços eram impotentes para repelir a ameaça que logo se tornou um turbilhão de luzes à sua volta.
Ela tentou retornar ao poço, mas as luzes a impediam, como centenas de agulhas de tecelão perfurando o couro. Os que ainda permaneceram nas proximidades da praça relatam que as luzes tinham rostos como o dos askas e enquanto atravessavam o ar da cidade em alta velocidade, emitiam fortes gritos que levaram muitos dos que as escutaram à loucura.
Em meio àquele fantástico e horrendo espetáculo o turbilhão consumiu todo o imenso ser de Marami convergindo novamente ao seu ponto de origem, o amaldiçoado machado de batalha do líder aska. Após ver que a arma estava novamente inerte ao solo, seus companheiros a recolheram para junto do corpo de seu falecido dono e enquanto uma multidão dos seus iguais voltava a se reunir no centro da praça, um brado começou a ecoar cada vez mais alto dentro dos muros de Kamim:
"Módur tár, módur tár, módur tár!"
Somente os askas conhecem o verdadeiro significado daquelas palavras, mas para os homens do norte ela se tornou a forma como denominaram a infame arma:
"Modur Tar, a matadora de deuses".
O nome do líder do ataque aska naquele dia é desconhecido pelos homens. Alguns crêem se tratar do mesmo ferreiro da Colina dos Desolados, já outros acreditavam que ele apenas teria forjado o Modur Tar às custas da própria vida, enquanto um outro guerreiro de seu povo o teria empunhado.
Mas este é o relato de como os aska tomaram conta da península da Rocha Dourada, fazendo de Kamim sua capital, que foi posteriormente rebatizada como Frelsi.
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Crônicas De Um Mundo Em Construção
FantasíaTodo escritor fã de fantasia certamente tem a idéia de construir seu próprio mundo fantástico, e alguns conseguem isso com maior facilidade. Outros como eu, vão recolhendo pedaços até que um dia surja a inspiração e criatividade para juntar tudo num...