VIII. Convergência

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Atenção: este capítulo contém uma cena de menção ao suicídio. Se for sensível a esse tipo de tema, por favor, não leia.

"A morte parece menos terrível quando se está cansado."

Simone de Beauvoir


Já passava da meia-noite quando ele chegou em casa.

Mais do que tudo naquele momento, Shouto desejava cair no conforto de sua cama e simplesmente apagar. Seu corpo estava pesado e ele se encontrava exausto daquele dia que parecia ter durado por uns vinte. Como era possível um número tão grande de coisas acontecer em um espaço tão curto de tempo?

Arrastando os pés, ele girou a maçaneta da porta, estranhando a quantidade de luzes acesas ao entrar. Trocou um olhar desconfiado com Izuku e caminhou até a sala, segurando com força a alça da mochila, pronto para usá-la como arma caso se tratasse de alguma invasão. No entanto, o gesto não foi necessário. Seu queixo endureceu e o corpo tencionou ao ver a cena na sala. Estavam todos ali, a mãe, Fuyumi e até mesmo Natsuo aparecera dias antes do combinado. Aquilo não fazia sentido, o aniversário de Touya ainda não havia chegado, então por que já estavam reunidos?

— Fuyumi? — ele chamou, cuidadosamente. Sentiu como agulhadas em seu pescoço o instante em que a atenção de todos se assentiu sobre si, os rostos igualmente tensos. Instintivamente, recuou um passo. Os olhos da irmã estavam repletos de lágrimas. Só então ele reparou no homem de terno preto bem cortado, parado de pé no centro da sala com a expressão fechada demais para significarem boas notícias. — O que está acontecendo?

Mas não foi Fuyumi quem lhe respondeu.

— Shouto — sua mãe chamou, a expressão mais séria do que vira em anos. Seu estômago revirou e ameaçou abrir caminho até a boca. — Precisamos conversar.

Mas não era necessário, pois, do outro lado da sala, com os braços cruzados e a mesma expressão rígida e fria que ele havia visto em várias fotos, se encontrava o seu pai.

Shouto abriu a boca, porém as palavras se recusavam a sair. Havia um zumbido agudo em seus ouvidos e a sensação de que o mundo estava se desfazendo sob seus pés. As paredes ondulavam e ele ouvia vozes o chamando ao longe, havia mãos o tocando, sacudindo-o. E também havia Midoriya, olhando-o em desespero. No entanto, ele não conseguia desviar o olhar do rosto do pai. De seus orbes vazios e negros que o encaravam de volta, confirmando o que seria dito em seguida: Todoroki Enji estava morto.

Ele não sabia com precisão em que momento havia parado de respirar, mas, no instante seguinte, Shouto piscou e se viu encarando o teto branco do seu quarto. Vozes sussurradas se infiltravam na penumbra, escorregando para o interior por uma fresta aberta na porta. Shouto as ignorou e manteve sua visão fixada na brancura vazia, desejando mais do que tudo que um portal se abrisse sob o seu corpo e ele afundasse em um redemoinho de sombras em direção a um mundo paralelo, um no qual ele não precisasse pensar – porque pensar doía – não precisasse virar seu rosto para confirmar a presença que sentia ao seu lado; um mundo onde seus pensamentos não o atormentassem. Era pedir demais estar em um lugar desses?

Talvez fosse. E por isso seu desejo nunca tivesse se realizado.

Com um suspiro que era tanto para reunir coragem e espantar aquela sensação pegajosa em seu peito, quanto para demonstrar sua desistência, ele olhou para o lado.

Enji Todoroki se encontrava parado ao lado de sua cama, a mesma expressão que via em seus pesadelos com o dia em que ele havia ido embora. As pessoas costumam dizer que crianças ainda muito pequenas não conseguiam reter memórias de eventos muito antigos. Para Shouto, isso não era verdade. Ele lembrava perfeitamente daquele momento, do desprezo, do abandono e da ira. Claro que só vários anos depois viera a identificar esses sinais, mas aquela memória queimava em sua mente, gravada a ferro em cada célula nervosa de seu cérebro e impossível de ser esquecida.

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