Obedecendo as ordens de Tabajara, os guardas levaram Joaquim para se banhar numa cachoeira e lhe deram novas roupas feitas de plantas e algodão para se vestir enquanto levavam seu pijama manchado de sangue de maburia para ser lavado. Após o banho, enquanto não terminavam os preparativos para sua apresentação, Joaquim passou o tempo do lado de fora da oca de Tabajara, sentado no chão junto a Niara, que contava para ele mais sobre a aldeia e suas incríveis habilidades de domar os animais que habitavam aquele lugar.
—Então você consegue falar com eles? —questionou Joaquim.
—Não é bem isso —explicava Niara —, eu só imito, comecei a fazer isso antes mesmo de aprender a falar, ai se eu imitar o som certinho, é como se eles conseguissem me entender. É bem legal, mas não é com todos que funciona, tem um monte deles, então é difícil saber os sons de todos, mas é bem legal de se aprender e ajuda bastante. Por causa disso que não me perco mais na floresta, quando não sei o caminho de volta, é só chamar uns plumontes e eles me mostram o caminho, tem plumontes em qualquer parte do mundo, sabia?
—Plumontes?
—Sim, são passarinhos bem fofos com um assovio bonito, mas só aparecem de dia, então se me perder de noite, tenho que torcer para que tenha algum grogum da lua por perto.
—Grogum da lua?
—São bichinhos gordos e melequentos, têm só duas pernas, dois olhos e duas orelhas longas, brilham e gostam de ficar pulando por ai, eles também ajudam a mostrar o caminho pra casa, mas só da pra encontrar de noite porque passam o dia todo dormindo nas tocas e não é nada fácil encontrar uma toca de grogum da lua.
— E existe um “grogum do Sol” ?
—Claro que não. —Niara nega enquanto ri divertida — Mas tem o grogum do dia, parecem groguns da lua mas são peludos e fofos e as orelhas são bem maiores. Eles só aparecem de dia e são bem mais fáceis de achar, mas são muito medrosos e burros, se perdem até mesmo das próprias tocas, então vivem fazendo um monte de tocas novas. Se for contar com um grogum do dia pra te ajudar, esquece, é mais fácil ele te fazer ficar mais perdido do que te levar de volta pra casa.
—Acho que vi um desses.
—Aposto que ele fugiu de você.
—Fugiu sim... depois um pássaro veio voando e comeu ele.
—Devia ser um turutum ou um pipelin, pode ser um escarlante, também, mas é bem mais improvável. Como que ele era?
—Grande, magrela e azul.
—Então era um turutum. Pipelins são mais gordinhos e não existe pipelins azuis, pelo menos eu nunca vi um, já vi marrom, verde, laranja, branco, mas nunca vi nenhum azul e nem ouvi falar de algum assim. Escarlantes são grandes, fortes e pratas, mas se fosse um escarlante, ele teria comido você junto.
—Entendi. Você sabe bastante sobre esses bichos, né?
—É que não tenho muito o que fazer aqui na aldeia, ai gosto de sair por ai pra ficar observando eles, aprender sons novos e fazer novos amigos, as vezes parece que é mais fácil de se fazer amizade com os bichos do que com o pessoal daqui.
—De onde eu venho não tem tanto bicho e minha mãe não deixa eu ir muito longe e nem ficar muito tempo na rua, ai só da pra encontrar pombos, sapos, minhocas e uns insetos tipo aranhas ou formigas, às vezes encontro uns ratos também.
—Nunca vi nenhum bicho desses, como eles são?
—Feios e nojentos, menos as formigas, elas só são bem pequenas e irritantes, odeio formigas.
—Você é tipo um caçador profissional, né, Juquim?
—Mais ou menos.
— Que legal!
Eles continuaram conversando até serem abordados por Kadu, amiga de Niara, uma jovem poucos anos mais velha e alta do que as duas crianças, tinha cabelos curtos e esverdeados, usava brincos de pedra em suas duas orelhas direitas e roupas compostas por folhas e pele de um animal de pelo baixo. Ela estava curiosa para conhecer Joaquim.
—Saudações, Niara, Saudações grande mensageiro.
—Saudações, Kadu! —responde Niara.
—Olá. —cumprimenta Joaquim.
—Então esse é mesmo o grande mensageiro, estava curiosa pra conhecê-lo, me chamo Kadu, como já deve ter notado.
—Ela é neta do chefe Tabajara. —acrescentou Niara.
—Sério? Seu avô é bem... estranho.
—O senhor achou? Ele não parou de falar sobre o senhor, falou muito bem.
—Não me chama de “senhor", parece que sou velho, e só tenho 11 anos.
—Ah, perdão, como posso chamá-lo?
—De Joaquim, é o meu nome, ou “você", sabe, como qualquer pessoa normal.
—Está certo, Joaquim.
—Ela também é caçadora, Juquim —comentou Niara.
—Caçadora?
—Sim, mas faz pouco tempo, só fui em três missões até agora, o sen... perdão, você é caçador também?
—Mais ou menos.
—Ele caçou um maburia hoje e deu de presente pra gente, em troca eu vou ajudar ele a voltar pra casa. —disse Niara.
—Eu ouvi alguns aldeões comentando, então realmente caçou sozinho aquele maburia?
—Pois é, foi difícil, mas cacei.
—Não é fácil caçar um maburia, isso é um trabalho pra caçadores de alto nível.
—Ele pode te ensinar algumas coisas, Kadu, ai você vai melhorar um montão e vão te deixar participar de mais missões.
—Não seja inconveniente, Niara —protestou Kadu —, o senhor..., digo, perdão, o Joaquim deve ter mais com o que gastar seu tempo.
—Que nada, ele arranja um tempinho, né, Juquim?
—Não sei, eu preciso voltar pra casa.
—Mas de um jeito ou de outro não da pra ir hoje, vai ficar muito tarde, tem sua apresentação ainda. Olha, você pode passar a noite aqui na aldeia, na minha casa, tem bastante espaço lá e eu te deixo dormir na minha rede, ai amanhã acordamos cedo, comemos alguma coisa, você da umas aulinhas pra Kadu e partimos logo em seguida, na verdade podemos andar um pouco pela floresta antes e...
—Não sei —Joaquim interrompe Niara —, minha mãe não me deixa nem dormir na casa dos meus amigos, imagina em um lugar como esse, ela nem deve saber que estou aqui.
Ao lembrar de sua mãe, Joaquim agarra os cabelos com suas duas mãos enquanto arregala seus olhos.
—Ai meu Deus! —ele exclama —Ela deve tá bem preocupada, preciso voltar agora mesmo!
—Pensa direito, Juquim, até a gente encontrar sua casa já vai ser de noite, e vai por mim, você não vai gostar nada de ficar perambulando por ai de noite e eu tenho certeza que sua mãe ia preferir que você chegasse amanhã do que receber a noticia que você foi devorado.
—Mas não posso deixar ela sozinha!
—Mas se for devorado vai deixar ela sozinha pra sempre!
—É... faz sentido. —Joaquim concorda pensativo.
—Então tá certo, você passa a noite na minha casa, ensina a Kadu de manhã, passeamos pela floresta e procuramos sua casa a tarde.
—Para com essa insistência, Niara, está perturbado ele. —Kadu diz irritada e um tanto envergonhada, logo após dar um leve chute na perna de Niara.
—Ai! —Niara reclama por conta do chute — Eu não tô perturbando, eu tô?
—Tá sim —Joaquim responde —, mas acho que da pra fazer do seu jeito, mesmo, mas sem a parte do passeio.
—Viu, só? —Niara diz com um olhar de deboche para Kadu.
—Sério?! —Kadu grita ao mesmo tempo que tenta conter sua alegria ao ouvir a resposta de Joaquim —Não quero ser um empecilho, entendo perfeitamente caso não seja possível.
—Eu... —Joaquim hesita por um segundo, mas prossegue —eu acho que dá pra ajudar, sim... mas só se eu tiver tempo.
—Legal! —Kadu comemora com um pequeno pulo enquanto estampa um sorriso largo no rosto —Eu ainda tenho muito o que aprender, mas não é fácil já que não saio pra muitas missões. Costumo treinar na floresta e acredito que umas aulas extras vão ajudar bastante, o senhor parece saber muito... perdão, você parece saber muito, imagino que qualquer pouco de conhecimento que me passe já será mais que o suficiente.
—É, acho que sim. —Joaquim responde um tanto desconfortável com a expressividade repentina de Kadu.
—A Kadu treina bastante, mesmo —reforça Niara —,ela quer ser líder dos caçadores, né Kadu?
— Sim, mas ainda preciso fazer muitas missões e passar por muitos testes, é um cargo muito difícil de se conseguir.
—Então por que quer ser líder, se da tanto trabalho? —Joaquim pergunta.
—É um cargo muito importante, admirado e respeitado por todos, é o segundo cargo mais importante, ficando atrás somente do chefe. O líder coordena todos os caçadores, que são responsáveis pelo abastecimento da aldeia, eles também nos protegem, além dos guardas.
—Entendi, parece bem importante mesmo.
—E é —Kadu confirma.
—E tem muitos caçadores aqui?
—Tem sim, mas estão todos fora, eles tem estado bem ocupados por conta da crise, estão trabalhando o dobro do que já trabalhavam, praticamente, aliás, já fazem 26 dias que não retornam.
—Mas você é caçadora e disse que não sai muito...
—Ah, sim mas... é que não faz tanto tempo que fui nomeada como caçadora, então preciso de mais experiência.
—Mas não precisa sair pra ter mais experiência?
—Sim, mas é que... —Kadu ficava cada vez mais encabulada conforme Joaquim perguntava —não sei muito bem como explicar.
—Os outros caçadores não gostam muito dela. —Niara comentou com Joaquim num cochicho que pôde ser ouvido por Kadu.
—Isso não é verdade! —Kadu protestou irritada.
—Claro que é, eles dizem que você só virou caçadora porque é neta do chefe Tabajara.
—Que calúnia! —Kadu exclama.
—Pois é, eu discordo deles, mas disseram isso, sim. Mas não tem porque ligar, são um bando de cabeças de kuburucum.
—O que é um “cabeça de kuburucum" ?—Perguntou Joaquim
—Kuburucum é um bicho cabeçudo, bem teimoso e burro, ai a gente chama assim quem é teimoso e burro, também.
—Não os chame assim! — Kadu exclama num tom ainda mais irritado enquanto cerrava seus punhos.
—Por que não? É o que eles são —Insistiu Niara,
—São eles que trazem mantimentos pra aldeia, como pode dizer algo assim?!
—E dai? Isso não muda o fato de serem uns cabeças de kuburucum.
—Retire o que disse! —Kadu exclama enquanto puxa os cabelos de Niara com uma das mãos.
—Ai! Me solta! —Niara grita, tentando tirar as mãos de Kadu de seus cabelos.
—Só quando retirar o que disse! —Kadu puxa ainda mais forte os cabelos de Niara, a fazendo gritar ainda mais alto.
—Solta ela! —Joaquim exclamou, sério, chamando a atenção das duas, o que fez ambas ficarem quietas e Kadu corar de tanta vergonha, soltando imediatamente os cabelos de Niara e se afastando.
—P-perdão, senhor.
—Não me chama de senhor!
—Perdão, Joaquim!
—Sua doida! —Xingou Niara, enquanto passava as mãos nos cabelos para arruma-los.
—Por que defende tanto eles se te tratam mal? —Joaquim perguntou.
—Eles não me tratam mal.
—Tratam sim! —rebate Niara —Além de não deixarem você participar das missões, sempre te dão apelidos feios e só não te zombam quando estão fora da aldeia ou quando seu vô tá por perto.
—Você não entende, Niara, são apenas brincadeiras.
—Brincadeira é subir em árvore e caçar burburins, o que eles fazem é kuburucunzisse, não concorda, Juquim?
—É, eu concordo. —Joaquim responde um tanto pensativo.
—O que? —Kadu fica surpresa com a resposta de Joaquim —Ela não sabe do que está falando!
—Olha, onde eu moro tem muitos soldados —conta Joaquim —, acho que eles são meio que parecidos com os guardas e caçadores ai, e tem um soldado que todo dia passa na minha rua e fica fazendo umas “piadinhas" comigo, mas ele só faz isso porque é um soldado, se não fosse eu acabaria com ele, eu odeio gente assim, é irritante.
—Como assim “acabaria com ele"? —Niara pergunta.
—Quer dizer que mataria ele, não é isso? —diz Kadu.
—Bom, não exatamente, mas se precisasse... —Joaquim responde pensativo.
—Mas ele não é como você? Por que mataria alguém como você? Não é errado matar seus iguais? —Niara questiona ficando cada vez mais confusa conforme Joaquim tentava explicar.
—Não, quer dizer, depende —Joaquim pensa procurando um jeito de explicar —,se a pessoa for ruim... Olha, eles matam também, eles acham que podem fazer qualquer coisa, isso é ruim.
—Mas que horrível! —Niara exclama franzindo o cenho —Não deveriam matar seus iguais, isso é errado!
—Mas se estão em cargos superiores e mais importantes, eles podem fazer o que quiserem, correto? Se não, como podem trabalhar sem liberdade? —Interroga Kadu, curiosa, coçando sua bochecha.
—NÃO! —Joaquim exclama num tom alto e agressivo —Não podem fazer isso! O dever deles é cuidar dos outros, não deixar com medo! Por que podem nos fazer se sentir mal? Por que? Isso não faz droga de sentido algum!
—Mas... não tem como só conversar e falar pra eles que isso é errado? O único jeito de resolver isso é... “acabar com eles"? —Niara pergunta.
—É isso mesmo. —Joaquim responde abaixando o tom de sua voz.
—Então podem decidir quem vive e quem morre? —Niara volta a questionar.
—Claro que podem —Kadu responde —, são seres divinos, se esqueceu?
—O que? Não. Quer dizer, não é bem assim... mas se fazem mal, por que temos que perdoar? Se você pelo menos da uma lição neles, eles aprendem que não podem fazer mal à ninguém de novo, mas tem que ser uma lição bem dada!
—Uma lição? Tipo um treinamento? — Niara pergunta, confusa com a expressão que Joaquim usara.
—Não, to falando de dar uma surra, bater nele até se arrepender de tudo que fez!
Kadu e Niara ficam em silencio por um segundo, as palavras de Joaquim as fazem pensar.
—Interessante —Kadu responde enquanto puxa uma das orelhas esquerdas.
—Isso é cruel —Diz Niara, com um olhar de estranheza.
—Não se você faz com quem merece. —Joaquim rebate.
—As coisas parecem bem estranhas lá de onde você vem, nunca imaginei que o jardim sagrado fosse assim. Por que quer voltar pra lá? —Niara pergunta.
—É minha casa e minha mãe ta lá também, ela precisa de mim. Preciso proteger ela dos guardas.
—Entendi... acho que eu também viveria em um lugar ruim pelos meus pais, mas ainda iria preferir estar em um lugar bom com eles. Você tem pai também, Juquim ou só tem mãe?
Joaquim abre sua boca para responder, mas logo em seguida a fecha, hesita e pensa por alguns segundos antes de falar.
—Tenho, mas ele ta passando uns dias fora de casa.
—Ele ta viajando?
—É.
—Que legal, minha mãe era viajante, ela já explorou o mundo todinho e descobriu um montão de coisa que ninguém sabia que existia, já o meu pai era um guarda, um dos melhores também, uma vez três maburias invadiram a aldeia e ele matou os três! Claro que alguns guardas e caçadores ajudaram, mas pra mim, meu pai foi o mais incrível. Os pais da Kadu eram açougueiros, eram os melhores da aldeia e como nossos pais eram amigos, os pais dela sempre nos deixavam ficar com os melhores pedaços de carne.
—E cadê eles? —Pergunta Joaquim
—Os meus pais estão em casa —Niara responde —, eles não podem sair porque foram purificados.
—Os meus também foram, mas eles ficam aqui na oca do meu avô. —Kadu.
—Purificados? —Joaquim levanta uma sobrancelha.
—Sim, posso apresentar eles pra você quando for pra minha casa, tenho certeza que eles vão gostar de você, Juquim.
A conversa é interrompida quando um dos guardas chama o garoto, alegando que os preparativos já estavam prontos, todos os aldeões já se encontravam em frente ao palco e Tabajara havia ordenado que ele conduzisse Joaquim até o local.
Joaquim se levantou, despediu-se de Kadu e Niara e seguiu o guarda que o levou até o palco que haviam montado em frente a oca de Tabajara.
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A Grande Árvore Dourada
Fantasía"A Grande Árvore Dourada, uma benção dos deuses criada para trazer vida, paz, alegria, abundância e proteção... na primeira vez ela os guardou, agora irá reergue-los, acabar com todo o sofrimento, trazer de volta aqueles que se foram e jamais voltar...