Os olhos de Joaquim estavam vidrados nos caçadores que haviam acabado de retornar para a aldeia, o que via embrulhava seu estômago, a situação em que os caçadores se encontravam chocou o garoto que observava tudo atentamente do meio da multidão agitada.
Com a ajuda dos guardas, curandeiras e demais aldeões, os caçadores, eram levados para as instalações de tratamento. Toda a multidão se deslocava para segui-los, exceto Joaquim, que estava paralisado com o que presenciara.
—Vamos, eles estão se afastando! —exclamou Kadu, antes de sair correndo para seguir a multidão.
—Vamos Juquim, vamos atrás deles! —dizia Niara, enquanto puxava Joaquim pelo braço.
—Eu não quero ir. —respondeu Joaquim, hesitando.
—Por que não? Você tem que conhecer eles!
—Você não viu como eles estão? Estão acabados! É melhor deixar eles em paz.
—Mas todo mundo ta indo.
—E dai?
—Vamos logo Juquim! —insistiu enquanto puxava Joaquim com mais força.
—Ta bem, eu vou, eu vou! —cedeu Joaquim, que se deixou ser levado por Niara em direção a multidão curiosa que seguia os caçadores.
As crianças passavam se esgueirando entre os aldeões afobados até se aproximarem o suficiente para que suas vistas alcançassem os caçadores.
—Olha eles ali! —exclamou Niara ao avista-los.
Ao se deparar novamente com o estado dos caçadores, Joaquim voltou a sentir enjoo; tampou a boca para barrar o vomito que subiu por sua garganta.
Entre todos aqueles homens feridos, um conseguiu desviar a atenção de Joaquim, um nativo alto e forte, de cabelos longos e olhos amarelados, era o menos ferido dentre os demais. Apenas sua presença foi o suficiente para intimidar o menino. Este que parecia tão focado, com um olhar sério, por um breve momento, desviou seu foco e fitou Joaquim, serrilhando os olhos com estranheza, mas logo em seguida, o ignorou e voltou a olhar para frente, retomando seu foco, enquanto que os olhos de Joaquim continuaram pregados nele até que sua vista não o alcançasse mais.
Chegando nas instalações, guardas ordenaram para que toda a multidão se afastasse e não perturbassem os caçadores. Obedecendo as ordens, Joaquim, Niara e Kadu se afastaram, caminharam pela aldeia e pararam em frente à uma casa de tecidos, sentando-se nos degraus do estabelecimento que se encontrava fechado.
Niara e Kadu conversavam entusiasmadas sobre os caçadores, enquanto Joaquim estava calado, de cabeça baixa, parecia pensativo.
—Você ta bem, Juquim? —perguntou Niara.
—To sim. —Joaquim respondeu, ainda pensativo.
—Viu os caçadores, Joaquim? —perguntou Kadu, animada —Eles não são incríveis?
—Eles não pareciam muito bem... estavam horríveis. —respondeu o garoto, virando os olhos para Kadu.
—Verdade —concordou Niara —Não viu aquele cara sem perna? E aqueles outros que tavam sem braços? Imagina só, perder um braço deve ser a pior coisa, ainda mais quando se é caçador, como podem caçar sem braço? Será que vai crescer outro no lugar?
—Não é assim que funciona, Niara —Kadu respondeu —, provavelmente irão utilizar próteses, membros falsos feitos de algum material resistente que substituam os membro que foram perdidos.
—Caramba, isso sim parece legal —disse Niara.
—Tenho que concordar, imagine só, ter uma braço feito de ossos de Tonitrus, seria uma arma esplêndida!
—Tinha um grandão —interrompeu Joaquim —que não tava tão machucado, um fortão de cabelo comprido e olho amarelo...
—Está falando do Piatã? —questionou Kadu —Ele é o líder dos caçadores, não tem como deixar de notá-lo, não é?
—Ele não parece muito legal.
—O que?! —indignou-se Kadu — Está brincando? Ele é maravilhoso!
—Não parece.
—Como pôde chegar a tal conclusão? Não percebeu sua imponência? Seus músculos, seu olhar... Não notou como estava em melhor estado do que os demais? É de longe o melhor entre os caçadores.
—Não achei tudo isso, é minha opinião.
—Poxa Kadu, esqueceu que o juquim é o mensageiro dos deuses? Ele sabe o que diz. E eu concordo com ele, Piatã nem é tudo isso.
Kadu esforçou-se para disfarçar sua incredulidade com o que Joaquim e Niara diziam.
—Certo, ele é o mensageiro, talvez esteja certo. —disse como se estivesse sendo forçada. — Agora, peço que me deem licença, vou visitar os outros caçadores.
Kadu se afastou das duas crianças enquanto acenava com a mão. Niara acenou de volta, mas Joaquim apenas a observou se afastando, sem dizer nada, ainda pensativo.
—Ei Juquim —disse Niara, assim que Kadu se afastou —, não que eu não concorde, mas por que acha que o Piatã não é legal?
—Não sei —respondeu voltando o olhar em direção ao céu —, só não tive uma boa impressão... Tô com fome.
—Quer pegar fruta na floresta? Sei de um lugar muito bom com varias frutas diferentes, é onde geralmente vou quando tô com fome e não tenho o que comer em casa. Na verdade eu vou quando tô entediada, também. Eu gosto muito de subir nas arvores e ficar lá em cima dos galhos, deitada, olhando pra paisagem e pros bichos, enquanto me empanturro de gumis. Você já comeu uma gumi? São muito saborosas. Teve uma vez que eu subi numa árvore pra pegar umas gumis e eu...
—Tá —interrompeu Joaquim, se levantando. —, vamos logo, minha barriga tá roncando.
—Tudo bem, vem comigo. —disse Niara, também se levantando.
As crianças passaram todo o resto da tarde em cima de uma árvore de gumis, comendo as pequenas frutinhas rosas e peludas da árvore, enquanto conversavam; Joaquim passou a maior parte do tempo quieto, escutando as longas histórias de Niara sobre cada fruta que ela já havia comido naquele lugar.
Quando a noite caiu, os dois retornaram à aldeia. Logo na entrada foram abordados por um guarda que os notificou sobre o pronunciamento de Piatã e ordenou que os dois fossem até o palco onde Joaquim havia sido apresentado.
Chegando no local indicado pelo guarda, os dois se depararam com uma multidão de aldeões que já estavam no aguardo de Piatã. Após alguns poucos minutos de espera, o líder dos caçadores finalmente subiu ao palco, mais outros poucos minutos de espera e começou seu discurso. Joaquim prestou atenção não só nas palavras do líder, mas também nas diferente reações que os nativos que o ouviam tinham; de aplausos contentes à expressões de surpresa, à choros desesperados, à discussões, à uma briga, e logo um tumultuo já havia se formado no lugar.
Joaquim e Niara eram empurrados de um lado para o outro pela multidão agitada enquanto tentavam se afastar, mas com tanta gente os empurrando sem notar que estavam ali, era praticamente impossível sair do meio do amontoado de nativos emocionados.
O caos só foi cessado quando Piatã ordenou, em voz trovejante:
—BASTA!!!
Todos se calaram e voltaram a atenção à Piatã, para ouvir seu sermão, indignado com o comportamento dos aldeões.
Logo em seguida, Tabajara subiu ao palco e também se pronunciou sobre a confusão, mas foi interrompido por um grito.
—CALÚNIA!
Todos olhavam para trás em busca do emissor do berro. Niara e Joaquim, pequenos, moviam-se entre o povo, esticando seus pescoços afim de também encontrar quem havia gritado.
—Quem foi que disse isso? —perguntou Tabajara, também erguendo o pescoço, procurando entre os aldeões de quem seria o grito.
Toda a multidão começou a se deslocar, dando espaço para que um nativo eufórico, segurando uma adaga de pedra e sem um braço passasse caminhando entre o povo, mancando e cambaleando em direção ao palco.
—CALÚNIAS, CALÚNIAS, BASTA DE CALÚNIAS! —gritava o homem.
—Peri? —Duvidou Piatã ao ver o aldeão — Peri, meu amigo, o que está fazendo? Deveria estar repousando!
—Um caçador? —estranhou Tabajara.
O homem parou de caminhar e apontou com a adaga para Tabajara, estava com os olhos avermelhados e uma expressão de desespero na face.
—MALDITO CALÚNIADOR! —gritou —NÃO PERMITIREI QUE ENGANE ESTA GENTE COM TUAS FALSAS PROFECIAS DESCABIDAS QUE OS ARRASTAM PARA O DEVASTADOR ABRAÇO DA MORTE!
O dizeres de Peri assustavam os demais aldeões que apenas assistiam calados e com olhos vidrados.
—Meu caro companheiro —disse Piatã, confuso com a situação — o que houve contigo?
—EU VI! —prosseguiu Peri —EU VI A VERDADE, VI O FIM QUE NOS AGUARDA CASO CONTINUEMOS A SEGUIR AS PALAVRAS DESTE HOMEM, EU VI O DESASTRE, EU VI A MORTE! A GRANDE ÁVORE TRARÁ A RUINA DE NOSSO POVO!
—Ordeno que controle-se imediatamente, caçador! —exclamou Tabajara.
—CALE-SE, CALÚNIADOR DESATINADO! NÃO PERMITIREI QUE MATE MEUS IRMÃOS!
Peri arremessou a adaga que passou por cima aldeões, cruzando o ar até atingir a barriga de Tabajara, rasgando sua carne e o fazendo urrar de dor no mesmo momento.
—Chefe Tabajara! —gritou Piatã, que imediatamente segurou Tabajara em seus braços, evitando sua queda.
—Meu vô! —Kadu saiu correndo e foi em direção ao seu avô, saltando em cima do palco e se ajoelhou ao lado de Tabajara, o encarando com um olhar desesperado e de preocupação.
Os guardas correram entre a multidão, indo em direção à Peri, para imobiliza-lo, mas Peri não se renderia facilmente.
O primeiro guarda que o alcançou, foi agarrado e arremessado ao chão por Peri. O segundo foi derrubado apenas com uma cabeçada. O terceiro e o quarto foram nocauteados por chutes e joelhadas do caçador.
Antes que mais guardas o alcançassem, Peri avistou Joaquim o encarando amedrontado e saiu em disparada na direção do garoto. Assustado, o pequeno menino tentou fugir, mas foi barrado pela multidão e logo alcançado por Peri, que o agarrou com força pelo braço, machucando-o.
—Socorro! —gritou Joaquim.
—VOCÊ! NÓS DEPENDEMOS DE TI! —gritava Peri, cara a cara com Joaquim, olhando fixamente nos olhos assustados do garoto. — NÃO ÉS MESAGEIRO, ÉS O MILAGRE!, TU ÉS NOSSO SALVADOR! NÃO DEIXE QUE ESTAS MENTIRAS DESTRUAM NOSSO POVO! DESTRUA A GRANDE ÁRVORE DOURADA OU ELA NOS DESTRUIRÁ!
Mais cinco guardas conseguem alcançar Peri e o imobilizam, fazendo-o soltar Joaquim.
—ENCONTRE O CAVALEIRO E A DAMA SEM ROSTO! PRECISA ENCONTRAR O CAVALEIRO E A DAMA SEM ROSTO!
—Cale-se, demônio! —gritou um dos guardas que imobilizavam Peri.
—ME SOLTEM! EU ORDENO! NÃO SE DEIXEM SER CONTROLADOS PELAS MENTIRAS DAQUELE HOMEM! —Peri se debatia bruscamente.
—BASTA, DEMÔNIO! —Gritou Tabajara, enfraquecido e eufórico, com sangue escorrendo de sua boca, enquanto era segurado por Piatã. —COMO OUSA MANIFESTAR-SE ENTRE MEU POVO? COMO OUSA ROUBAR O CORPO DESTE HOMEM?!
—COMO OUSA CHAMAR-ME "DEMÔNIO"?!
—É ISTO QUE ÉS! UM MALDITO DEMÔNIO VERMELHO! NÃO SEI COMO SE INFILTROU AQUI, MAS NÃO PERMITIREI QUE COMPROMETA MINHA GENTE! PURIFIQUEM-NO IMEDIATAMENTE!
—Mas meu chefe... —tentou intervir Piatã.
—Sem "mas", Piatã, vamos ajudar seu companheiro.
—Deve haver outro jeito, ordene para que levem-no até o isolamento, assim teremos tempo de encontrar outros meios.
—Não há outros meios Piatã, ele está... muito... muito instáv...
Sem mais forças, Tabajara desacordou nos braços de Piatã.
—Vô! Acorde vô! —gritava desesperadamente Kadu com lagrimas em seu rosto
— Levem-no até as curandeiras! —gritou um dos guardas que imobilizavam Peri, que se contorcia para que o soltassem. —Nós cuidaremos de Peri.
Apreensivo e confuso, Piatã olhou para Peri, em seguida para Tabajara, seus dentes rangiam.
—Grande Piatã, nós precisamos ir! —Kadu chamou a atenção do líder.
Piatã então fechou fortemente os olhos e os abriu, irritados e com lágrimas, serrilhando as sobrancelhas.
—Perdoe-me meu amado amigo —disse em um tom baixo antes de descer do palco num salto, com Tabajara em seus braços e correr em direção às instalações sem olhar para trás. Kadu foi logo atrás, o acompanhando.
—Precisamos de elixir! Alguém nos dê elixir! —Gritava um guarda.
—Eu tenho elixir! —gritou, com voz trêmula, uma nativa do meio da multidão.
Peri parou de se contorcer como seu corpo tivesse sido congelado, a voz que ouvira vindo da multidão lhe era familiar. Quando olhou na direção de onde a voz viera, avistou sua esposa, Tainara, com lágrimas nos olhos e um pequeno frasco de vidro com um liquido verde em seu interior.
—T-Tainara? —gaguejou Peri.
A nativa se aproximou dos guardas e entregou o frasco na mão de um deles.
—Por favor, ajudem meu esposo. —disse Tainara, com as lágrimas escorrendo de seus olhos.
—Não se preocupe, nós o salvaremos. —respondeu o guarda.
—Minha amada, o que está fazendo? Não permita que façam isso! Eu estou tentando salvar nosso povo, acredite em mim!
—Meu querido —murmurou Tainara, aproximando seus lábios às orelhas de Peri —, se ainda está ai, saiba que jamais deixarei de te amar e aguardarei cada segundo até que a Santa Árvore nasça e possamos nos encontrar novamente.
—NÃO! —Peri gritou, assustando Tainara e fazendo-a se desaproximar — Não faça isso! Se me amas mesmo, não permita que façam isso!
Tainara desabou em lágrimas, fechou os olhos, se virou e afastou-se.
—QUERIDA! NÃO ME DEIXE AQUI! NÃO ME ABANDONE!
O guarda que segurava o elixir em sua mão colocou-se frente a frente com Peri e começou a proferir dizeres aos deuses.
—Meus amados, bondosos, poderosos e imponentes deuses, aqueles que nos guardam e nos abençoam, imploro que nos ajudem a salvar o espirito deste irmão, guardem-no e destruam o espirito deste demônio que atenta contra tua vida, a vida e a paz de nosso povo e teus maravilhosos planos divinos.
—MEUS IRMÃOS! NÃO FAÇAM ISSO! VOCÊS ESTÃO SENDO ENGANADOS!
O guarda destampou o recipiente, empunhou uma adaga de pedra de seu cinto e a posicionou próxima a garganta de Peri.
—Por nossos espíritos, por nossos ancestrais, por nossos deuses, eu purifico este espirito e o devolvo ao santo jardim sagrado.
—ME SOLTEM! —Gritava Peri, chorando enquanto debatia-se desesperadamente.
—Que os deuses te toquem. Que os deuses lhe recebam. Que os deuses lhe curem. Que os deuses lhe retornem —disse o guarda, fechando os olhos e estendendo sua adaga sobre a cabeça de Peri.
—Que os deuses te toquem. Que os deuses lhe recebam. Que os deuses lhe curem. Que os deuses lhe retornem —repetiu a multidão enquanto estendiam suas mãos direitas em direção à Peri e os guardas.
Dois guardas forçaram o caçador a abrir a boca para que o outro o fizesse tomar o liquido verde do frasco. Após ele engolir o líquido forçadamente, o guarda com a adaga, posicionou a lâmina afrente de seu pescoço e a penetrou profundamente na pele do caçador, movendo-a com precisão horizontalmente, cortando sua garganta, fazendo seu sangue esguichar e escorrer por seu pescoço até perder completamente suas forças, seu corpo rendeu-se, seus olhos voltaram fixamente para os céus, não sentia mais nada, não ouvia mais nada, sua visão aos poucos era apagada e os pensamentos gradativamente deixavam sua mente, a última imagem que viu em sua imaginação era de sua amada, Tainara, seu último desejo era tê-la ao seu lado, um ultimo desejo que não podia ser realizado, teve que se conformar, deixar suas ultimas lágrimas correrem por seu rosto e a vida esvair-se de seu corpo.
Todos os aldeões aplaudiam e glorificavam aos deuses, mas Joaquim estava congelado, impactado com a cena que presenciara, suas pernas bambeavam, seu coração estava acelerado e o estomago embrulhado, seu enjoo aumentou até que, sem conseguir segurar mais, vomitou.
—Juquim! —Niara gritou se aproximando dele —Você tá bem, Juquim?
Joaquim estava tonto, mal conseguia ouvir as vozes e sons ao seu redor, sua visão estava turva e suas pernas não suportavam mais ficar em pé, mesmo assim tentou caminhar entre os nativos, só conseguia pensar que deveria sair dali e voltar para sua casa, junto a sua mãe, estava confuso e assustado, mas, sem conseguir dar mais paços, foi ao chão e apagou.
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A Grande Árvore Dourada
Fantasia"A Grande Árvore Dourada, uma benção dos deuses criada para trazer vida, paz, alegria, abundância e proteção... na primeira vez ela os guardou, agora irá reergue-los, acabar com todo o sofrimento, trazer de volta aqueles que se foram e jamais voltar...