I. A princesa do Velho Bosque

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Sempre quando chovia, a terra que cobria o estacionamento parecia se misturar com as pedrinhas de brita que descansavam sobre o chão, transformando todo terreno em frente ao refeitório num mar irregular e superficial de lama. Mesmo de galochas amarelas, Victória conseguia senti-la, pegajosa e úmida, incrustando nas solas de suas botas e afundando em volta de seus pés – deixando pegadas impressas por onde quer que passasse.

Tinha chovido na noite anterior, e nas noites antes dessa, mas ainda era esperado que o Sol saísse no feriado. Em Prado, era quase sempre assim: pouco importava o quanto chovera nos dias que antecediam o Mardi Grade, quando chegasse a hora, o céu escuro cederia passagem ao Sol radiante.

Ainda que remota, a chuva era a última esperança de Victória melhorar seu humor. Não porque acabaria com o feriado, já que isso jamais aconteceria. Mas, talvez, uma tempestade violenta estragasse a festa dos demais.

Desejar isso não era justo, mas era tudo que lhe restara desde o momento em que foi obrigada a passar os quatro dias mais importantes do ano como babá de crianças e adolescentes. Pois se o Mardi Grade acontecesse – como ela sabia que aconteceria – os pais precisavam deixar seus filhos no Acampamento Velho Bosque. E a líder do time de monitores desse ano seria Victória Katarina Dallarosa, é claro. Mais uma vez. Afinal, não podia ser mais perfeito, certo? Ela era filha do Diretor do Acampamento, como poderia recusar?

– Não é tão ruim! – Amanda comentou enquanto esmigalhava um bolinho acima da boca, um pouco mais cedo naquela manhã. O cheiro de pão quente e café passado inundava o ambiente e alguns dos monitores conversavam animados. Pequenos grãozinhos de açúcar se acumulavam nas pontas dos dedos de Amanda e no canto de sua boca, enquanto Victória contemplava o restante de açúcar no fundo da sua xícara. – Pelo menos é uma coisa que você já está acostumada e, cá entre nós, podia ter sido pior.

E Victória sabia disso. Ainda mais depois de ter cometido o tremendo erro de arrebentar o carro do pai na cerca de contenção da rodovia enquanto voltava da noite na Will&Will, a única balada da cidade.

Estava meio bêbada, tinha de admitir. Não tão bêbada quanto Ana, claro, sua amiga meio desmaiada no banco do passageiro, mas o suficiente para não se lembrar de muita coisa além da sensação de enjoo e do gosto de bile na garganta.

Ah, e da bronca. Se lembrava dessa parte também.

Mas a punição de passar o feriado mais importante do ano trabalhando no Acampamento não era realmente por causa daquele acidente. Talvez isso tivesse ajudado, é claro – mas não era a real motivação. No fim, tudo fazia parte de um plano maior de seu pai para mantê-la por perto e sob controle.

E seu velho sabia disso melhor do que ninguém.

Ana ofereceu ajuda para pagar pelo concerto do carro e também se voluntariou para passar o feriado no Acampamento, dividindo a punição com a amiga. Mas Victória não podia exigir isso dela – Ana não tinha tido parte da sua decisão de dirigir, nem tinha condições para isso e, principalmente, não era obrigada a suportar as tramas manipuladoras do Sr. Marco Dallarosa.

Desde o seu "dia do julgamento", uma sensação de injustiça reinava entre ela e o pai. Ela não era boa motorista? Fato. Nem devia ter dirigido depois de beber? Confere. Mas no fundo tudo aquilo tinha a ver com sua decisão de estudar fora da cidade.

Victória queria ser jornalista. Mais do que isso talvez, queria conhecer o mundo. Prado era uma cidade legal – tinha seu encanto, com toda certeza. Era a terra de seus ancestrais e a sua também. Mas ela ansiava por mais, pelo mundo todo e além dele. Sua mãe era neutra na situação. Divorciada há quase 10 anos, não via motivo algum para permanecer no que chamava de "buraco encantado do mundo". Odiava a cidade, quase com tanta intensidade quanto odiava seu pai e os Budapeste.

A Noite das CoroasOnde histórias criam vida. Descubra agora