Muitos anos depois...
Oaxaca fervilhava de vida com a proximidade de mais um Día de Los Muertos. Ainda era 31 de Outubro, mas a cidade começava as festividades um dia mais cedo para atrair turistas estadunidenses com atividades típicas de Halloween. Naquele ano, a maior atração na feira da cidade era a Casa Assombrada.
Emílio, um habitante local, não tinha particular interesse na atração, apesar de ter entrado atrás dos amigos. Tendo parado por uns minutos para enviar uma mensagem, não deu pelo afastamento silencioso do seu grupo. Quando levantou a cabeça, estava sozinho. Bem, pelo menos segundo lhe parecia.
Avançou pelas tábuas quebradiças com passos inquietos, forçando a visão naquele breu intermitente. Sem que compreendesse a razão, os seus pêlos eriçaram-se e a sua pulsação acelerou, forçando o sangue a correr mais depressa, queimando as veias como lava.
— Joder, Javier! Sai daí! — exclamou, convicto de que as sombras que se remexiam no fim do corredor pertenciam ao seu melhor amigo.
O vulto de um homem apareceu, ainda que deformado pelo negrume que sufocava Emílio lentamente. Ansioso pela ideia de um susto iminente, o jovem decidiu que era melhor acabar com a brincadeira pelas próprias mãos. Enchendo-se de coragem, ele avançou para Javier, seguindo o caminho que as lâmpadas que piscavam no teto lhe mostravam.
Contudo, ao vislumbrar o tom de pele acinzentado e a prata líquida das irís da figura à sua frente, Emílio percebeu que não se tratava de Javier.
— P-peço desculpa. Confundi-o com...
A figura sorriu de boca aberta, como se soltasse uma gargalhada silenciosa. Contudo, o som do estalar e reajustar dos ossos que se seguiu não foi, de todo, harmonioso e convidativo. Em meros instantes, aquele vulto disforme duplicou o seu tamanho, acabando encurvado pela corcunda acentuada. As unhas humanas viraram garras, a pele cinzenta ficou translúcida e os caninos inferiores projetaram-se vários centímetros acima da mandíbula.
Aterrado, Emílio forçou os músculos entorpecidos a descongelar e deu meia volta para fugir, temendo pela vida. A criatura urrou nas suas costas e saltou na sua direção, usando um dos braços compridos para derrubar as suas pernas. O humano caiu em frente e deixou-se estar estático por uns segundos, certo do seu fim.
Fim esse que não veio.
Com uma mistura de espanto e curiosidade mórbida, Emílio olhou sobre o ombro. A criatura salivava a centímetros da sua cara, com a boca escancarada e com a língua bifurcada prestes a envolver o seu pescoço. Emílio não aguentou ver a cena e desmaiou, com o aspecto da criatura gravado no seu olhar petrificado.
Assim que o humano perdeu a consciência, a criatura recuou aos tropeções, agarrada à cabeça como se tivesse dores agudas. Lentamente, o seu corpo monstruoso voltou à sua forma original, enquanto imagens e emoções indesejadas preenchiam o seu interior e tomavam o lugar da sua alma. Esta era a parte do processo que menos gostava: o seu inferno pessoal.
Instantes depois, a transformação estava completa. A identidade da sua vítima desmaiada era agora sua e já não havia nenhuma força maior que o compelia a ficar na Casa Assombrada. Enrique poderia ir embora. E tê-lo-ia feito, não fosse a sua nova e ofegante forma humana ter chocado com um delicado corpo feminino.
537 palavras
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Corazones Muertos ✔
Short StoryUma festa híbrida entre o Halloween americano e o Dia de Los Muertos mexicano. Uma deusa e as suas servas. Um gato. Dois corações. Uma maldição. Na véspera da noite em que os mortos atravessam o véu que separa os mundos para se reunirem com aqueles...