Emílio tomou a mão de Alma, saindo do Casarão Assombrado, notando desde logo a estranha sensação tomando conta da garota, que o olhava de relance.
— Algo errado?
— Não... — ela hesitou, desviando o olhar para o céu.
A rapariga sentiu as pontas de seus dedos tocarem-lhe no queixo, fazendo com ela voltasse a atenção para ele.
— Mesmo? — perguntou.
Um sorriso involuntário formou-se nos lábios de Alma. Para alguém que havia encontrado há pouco tempo e com quem havia conversado apenas coisas triviais, ele era observador.
— Eu... tenho a estranha sensação de que já nos conhecemos... mas não apenas de vista... Isso é impossível, certo?
Ele soltou um riso entrecortado, fazendo os pensamentos de Alma evaporarem.
— Você fica fofa com vergonha, pequena Alma. — Suas palavras a pegaram de surpresa, e um ligeiro rubor pintou sua face. — Talvez não seja algo tão surreal. Pena que você se assustaria com la verdad.
Alma perdeu-se em pensamentos. Se ignorasse as sombras e ruídos, poderia comparar aquilo a um cenário de algum romance.
— Podemos-nos sentar ali?
Ela assentiu, saindo do torpor do momento. Os dois caminharam para o banco em frente a um pequeno lago quase verde, com pedalinhos em forma de pato abandonados lá dentro.
Com o coração aos tropeços, e a curiosidade cada vez maior, ela não pôde evitar perguntar:
— Olhe em volta. Estamos em um parque de Halloween, o que poderia ser mais assustador do que...
Mas o que exatamente poderia ser mais assustador foi algo que Alma não teve tempo de dizer, pois diante de seus olhos o rosto de Emílio começava a se distorcer, adquirindo uma aparência bestial.
— Olhe para mim, Alma. — A sua voz agora não passava de um ruído. — Veja o que eu me tornei. Essa é a verdade que você esperava? Uma fera transformada e feia?
Ela viu uma lágrima solitária e discreta escapar de um de seus olhos, a qual ele rapidamente limpou ao desviar o rosto para o outro lado.
— Não é real — falou. — Você não pode ter sido sempre assim. Não me importo que seja feio, sabe... a beleza que guarda dentro de si compensa qualquer coisa.
Emílio então se levantou, encurtando a distância que ela havia imposto entre eles, colocando a mão no seu rosto antes que Alma tivesse a chance de questionar. Imediatamente, memórias vieram à tona num turbilhão: os dias perto do garoto loiro, as tentativas de declaração de amor falhadas e o momento de coragem, que a morte dele silenciou.
Tão rápido quanto vieram, as cenas foram se dissipando, fazendo com que acordasse do transe.
— Enrique? — perguntou, feliz, já com a certeza da resposta. — Como isso é possível?
Um sorriso invadiu o rosto do jovem.
— Você tem sorte, pequena Alma. Descobriu cedo o lado mais puro e sincero do amor, não precisou aprender isso de uma maneira dolorosa. Não precisou que uma maldição recaísse sobre você para que soubesse que nunca existiu diferença entre a filha da empregada e o herdeiro rico.
Alma sentiu os braços dele na sua cintura e a testa dele a repousar na sua.
— Espero que Hades não tenha te feito correr muito — disse, suavemente. — Mas aproveito a oportunidade de te entregar algo.
Entre os seus corpos, a flor de papel que aquele gato havia roubado parecia reluzir.
Ela levantou o olhar para o dele.
— Vamos, Enrique. — Convidou, estendendo a mão. — Volta comigo. Vamos recomeçar da maneira correta.
No fim do parque uma forte luz se fez presente. Era a passagem de Alma e Enrique, que voltara definitivamente à sua forma humana original sem se aperceber. De mãos dadas, eles atravessaram o portal para o mundo dos mortos. Como sempre se diz: as almas daqueles que já não estão mais entre nós não devem se prender em um meio ao qual não pertencem.
Não muito longe, a figura da Catrina sorria ao ver o casal partir. Aos seus pés, a sombra de um gato miava.
— Não se preocupe, Hades. A tarefa de unir corazones muertos está longe de terminar.
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Corazones Muertos ✔
Short StoryUma festa híbrida entre o Halloween americano e o Dia de Los Muertos mexicano. Uma deusa e as suas servas. Um gato. Dois corações. Uma maldição. Na véspera da noite em que os mortos atravessam o véu que separa os mundos para se reunirem com aqueles...