Nessa mesma noite, em pleno cemitério de Oaxaca, Alma, ajoelhada ao lado da campa da melhor amiga, colocava cuidadosamente três flores de pétalas laranjas sobre a mesma, afastando simultaneamente uma lágrima que ameaçava rolar pelo rosto.
Alma recordava na perfeição o dia em que a conheceu, quando a mãe começou a trabalhar como empregada na casa de uma das mais ricas e prestigiadas famílias de Oaxaca. Apesar da diferença de classes sociais, a outra aceitou-a na sua vida sem sequer pestanejar, e rapidamente desenvolveram uma amizade que durou anos.
Despertando das memórias com um suspiro ruidoso, Alma recolheu as mãos para iniciar a oração pela alma da amiga. Nesse instante, o restolhar de folhas fez-se ouvir atrás de si, provocando-lhe arrepios pelo corpo.
Da escuridão dos arbustos, uns olhos verdes reluzentes apareceram. Estes ganharam lentamente a forma de um gato, cujo pelo totalmente negro reluzia à luz da lua. Alma levou a mão ao peito, respirando de alívio.
O animal aproximou-se e saltou para cima da campa, cheirando as flores cempasúchil que ela tinha colocado. Nesse instante, para surpresa de Alma, o gato abocanhou uma delas, afastando-se numa corrida até à saída do cemitério, levando a flor entre os dentes.
— Ei, ¡eso es mío! — gritou, vendo-se obrigada a seguir o felino que ia desaparecendo por entre as árvores.
Quando deu por si, tinha chegado à entrada do famoso parque de diversões da cidade, alusivo ao Halloween. Acabou por ser conduzida até uma casa assombrada que, por ser uma das atrações principais, encontrava-se rodeada por vários grupos de jovens, preparando-se para entrar.
— Qué estoy haciendo? — desabafou em voz baixa, antes de passar à frente na fila para seguir o gato.
Entrou vagarosamente, ouvindo o estalar da madeira debaixo dos pés, ao mesmo tempo que fazia percorrer os olhos por cada canto embebido na escuridão. Completamente absorta na missão de recuperar a flor, Alma acabou por embater contra o corpo de um rapaz, dando um salto com o susto que apanhou.
— Jesús!
— Não. Sou só eu... — respondeu ele, esboçando um meio sorriso apreensivo, parecendo desorientado.
Alma conteve o riso, apreciando o bom sentido de humor. O rapaz parecia ter a sua idade, mas não era propriamente bonito: tinha o cabelo castanho fino colado à cabeça, olhos pequenos próximos um do outro, nariz grande, e as roupas que utilizava ostentavam um ar usado e pouco elegante. Porém, algo na sua voz ou no seu olhar, a transportou de volta a um momento específico, despertando sentimentos que há muito trazia escondidos.
— E quem és tu?
Ele pareceu ficar atrapalhado com a pergunta, coçando nervosamente a nuca.
— Sou o E... — o rapaz cortou o seu discurso repentinamente, parecendo recordar-se de algo. — O meu nome é Emílio.
Ela sorriu-lhe, e estendeu a mão para ele a apertar.
— Sou a Alma, prazer.
Emílio aceitou o gesto, nunca desviando os olhos dos dela, nos quais Alma se perdeu, engolida por memórias que subitamente lhe invadiram a mente. Ela conhecia-o de vista, lembrando-se do seu rosto das vezes que ia à santa missa na igreja de Oaxaca. Porém, não era isso que o tornava tão familiar.
O momento foi interrompido por um miau, no instante em que o gato preto se colocou entre eles, roçando a cabeça felpuda na perna do rapaz, ainda segurando a flor laranja entre os dentes.
562 palavras
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Corazones Muertos ✔
ContoUma festa híbrida entre o Halloween americano e o Dia de Los Muertos mexicano. Uma deusa e as suas servas. Um gato. Dois corações. Uma maldição. Na véspera da noite em que os mortos atravessam o véu que separa os mundos para se reunirem com aqueles...