— Uma cempasúchil...
Emílio encarou a flor como se fosse um artefato, os olhos reluzindo com lembranças que pareciam distantes. Alma franziu um pouco o cenho, um sorriso doce e confuso surgindo em seus lábios.
— As ruas estão cheias delas, principalmente perto do cemitério. - Mencionar o local fez o coração da jovem pesar, mas ela afastou as garras do luto com um chacoalhar da cabeça. — Tem algum tempo que não as vê?
— Digamos que sim. — Emílio sorriu acanhado, um pouco alarmado em como a presença de Alma tomava conta de seus sentidos. Ela parecia intensa, viva. Tudo o que ele não era. - Essa é minha flor predileta, tem um valor sentimental.
O olhar curioso dela fez com que Emílio sentisse a necessidade de explicar. Mesmo tão vibrante, algo em Alma parecia pedir por um pouco de consolo, e ele sentiu vontade de proporcionar isso a ela.
— Eu gosto muito da lenda que envolve essa flor. Por acaso a conhece? — Bastou um sacudir de cabeça para que Emílio se preparasse para contar a história, o tom de voz mais calmo e linear. - Dois jovens astecas, Xóchitl e Huitzilin, se conheciam desde a infância e eram inseparáveis.
"Com o tempo, eles se apaixonaram. O amor os apanhou de jeito, e sentiam que suas almas estavam entrelaçadas pelo destino dos deuses. Tanto que todas as tardes eles levavam flores ao Deus Sol, Tonatiuh, e juraram sob a admiração da divindade que iriam se amar para sempre, até mesmo para além da morte.
Porém, a calmaria durou pouco já que uma guerra assolou o povo e Huitzilin teve de lutar, deixando a amada para trás. Por fim, ele morreu em combate, e Xóchitl sentiu seu ser se partir com a notícia.
Ela não hesitou em ir uma última vez à montanha onde deixavam oferendas a Tonatiuh e clamar para que o deus a unisse para sempre com seu amor. Comovido, o Deus Sol lançou seus raios sobre ela e a transformou em uma linda flor de mesma tonalidade, a cempasúchil.
O desejo de Xóchitl não tardou a se realizar, já que um colibri, completamente apaixonado pela flor que ela havia se tornado, aproximou-se. Era Huitzilin em sua nova forma.
Assim, desde que existissem cempasúchil e colibris, os amantes estavam unidos para sempre."
Alma piscou algumas vezes quando Emílio parou de contar a história, percebendo-se completamente absorta na narrativa. Seu coração sentiu um pouco pelos amantes, e com aquelas poucas palavras ela se viu emocionada.
— Você é bom como contador de histórias.
— Obrigado... — disse, finalmente desviando a atenção da cempasúchil.
Um momento de silêncio até que a curiosidade de Alma vencesse.
— O que o atrai tanto à lenda?
Emílio suspirou.
— O amor dos dois. Consigo sentir como eles se amavam e acho que sempre invejei isso. — O rapaz encarou Alma, perdendo-se um pouco em suas íris. Um nó se formou em sua garganta. — Sempre invejei esse sentimento, queria ter aprendido como ele é, durante a vida.
Emílio esperava um riso, ou um deboche, não o que ele viu nos olhos dela. Ele não estava preparado para a compreensão que Alma lhe ofereceu, juntamente com um sorriso de canto, meio triste, meio empático.
— Creio que entendo como se sente. Mas ainda está aqui, tem chance de consertar isso.
— Tem razão. — "Queria que tivesse", pensou, amargo.
— Bom... — O coração de Emílio retumbou suavemente quando Alma indicou a rua com a cabeça - O que acha de uma caminhada?
Emílio sorriu, e pela primeira vez em muito tempo, foi um sorriso que surgiu de sua essência.
— Eu adoraria.
611 palavras
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Corazones Muertos ✔
Short StoryUma festa híbrida entre o Halloween americano e o Dia de Los Muertos mexicano. Uma deusa e as suas servas. Um gato. Dois corações. Uma maldição. Na véspera da noite em que os mortos atravessam o véu que separa os mundos para se reunirem com aqueles...