II- Vertigem

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— Salvos por um tiro na cabeça.

Erick se vangloriou, orgulhoso, como quem acabou de ter um ato nobre, como se por tirar uma vida ele estivesse fazendo um favor a nós, nos salvando, e pior, todos agiam como se ele tivesse realmente feito isso.

— Que velho louco, tentou nos enfrentar. — disse Ana.

— É, ele estava realmente disposto a não nos deixar ir embora. - respondeu Júnior.

— Erick agiu no momento certo — Caio olhou para mim e se afastou do corpo à nossa frente — Se não fosse por ele, talvez um de nós nem estivesse mais aqui. — A fala soou como uma indireta para mim, como se a minha vida tivesse sido salva naquele ato que eles julgavam tão nobre.

— E então eu teria um problema maior do que esse aqui. — Erick guardou o revólver nas costas.

Senti o meu corpo todo tremer e minhas mãos suarem frio, minha cabeça doía como se tivesse levado uma martelada. Era real, o pior tinha acontecido e todos estavam agindo como se fosse nada.

— Sim. — Responderam em uníssono antes de sumirem entre os corredores estreitos daquele mercado.

Erick havia ordenado algo que não pude dar atenção, minha única reação foi sair daquele lugar para tentar buscar o ar que faltava em meus pulmões. Eu não queria estar ali, não queria que tudo tivesse acabado daquele jeito e não queria aceitar que parte daquela culpa era minha, que por estar ali, aquele sangue que escorria pelo chão também escorria por minhas mãos. Era inacreditável, insuportável.

O cheiro do sangue ainda queimava minhas narinas, e era tão forte que incomodou meu estômago, me obrigando a correr. Tapei a boca com as mãos e torci para conseguir segurar, eu precisava vomitar. Passei pela porta que dava acesso à rua e senti a dor de cabeça piorar quando o sino soou, a enxaqueca me fez fechar os olhos com força, expressando uma careta. Corri novamente quando avistei uma moita do outro lado da calçada, seria ali mesmo.

Meu estômago agora me causava outra dor, a ânsia ainda vinha, mas não restava mais nada que pudesse ser colocado para fora, só sobrou o desconforto e a sensação de enjoo, e para piorar, meu corpo todo tremia. Eu só pensava em sair daquele lugar.

Olhei para os lados, pensando em alguma maneira de fugir dali, mas antes que eu pudesse fazer algo, ouvi o sino soar outra vez. Era o grupo passando pela porta e carregando enormes sacos, caminharam até o carro e empilharam no porta-malas tudo o que tinham em mãos, eram produtos do mercado, tudo o que eles julgavam ser útil, comidas, bebidas, até produtos de limpeza e higiene pessoal, eles não hesitaram em pegar nada, afinal de contas, não havia mais ninguém ali para impedi-los.

— É a sua primeira vez, não é? Às vezes acontece, mas você se acostuma. — Não entendi se Caio queria me confortar ou me provocar, mas olhei fixamente em seus olhos, furiosa, eu queria que ele se calasse e sumisse da minha frente. — Olha... Se você não entrar no carro por conta própria, nós iremos te carregar.

Olhei à minha volta e os outros estavam atentos e em posição para fazerem o que fosse necessário para me conter se precisassem, não havia escapatória, então apenas caminhei até a porta do carro, me sentei no banco da frente e esperei.

Caio sentou no banco do motorista e deu a partida, o que me impressionou pois não era ele quem deveria estar ali. Olhei pela janela e tentei achar Erick, mas não o vi por perto.

— Ele vai resolver as coisas por aqui. — A voz de Caio foi a última coisa que ouvi por um longo tempo.

No caminho de volta para o galpão, tentei diversas vezes aproveitar o silêncio e a ausência de Erick para também silenciar minha mente, com a esperança de que talvez o vento que entrasse pela janela, ou a paisagem em frequente mudança me ajudassem com aquilo, mas na mesma velocidade em que o cenário das ruas mudavam, as lembranças daquele dia voltavam e tudo acabava ficando distante. De repente o que meus olhos enxergavam e meus sentidos eram capazes de capitar foram substituídos por aquelas lembranças que, de uma só vez, voltaram a repetir na minha cabeça. Os olhos arregalados do senhor, expressando o medo, a arma tremendo em sua mão, o sorriso de Erick, o som do disparo e o impacto do corpo caindo no chão, tudo em um eterno looping na minha cabeça.

Tentei achar o motivo pelo qual o Erick fez o que fez, qualquer coisa que justificasse ele ter passado dos limites e pensado que aquele senhor assustado faria alguma coisa de mal para nós, ou que atiraria, mas não consegui chegar em nenhuma justificativa válida. Parecia que ele tinha feito aquilo para se divertir, e o que mais me machucava era saber que apenas eu estava ferida com aquilo, que apenas eu me importava, por um momento me questionei se o problema ali eram eles ou eu.

Após algum tempo presa na tortura da minha própria mente, senti finalmente o carro parar e o silêncio após o motor ser desligado, era a oportunidade perfeita para escapar daquela prisão.

— Você deveria se limpar, está com um cheiro horrível. — disse Caio ao meu lado.

Ele enrugou o nariz enquanto me olhava, e então usou as mãos para bloquear a passagem de ar, e só naquele momento percebi que estava realmente cheirando mal, com respingos de sangue pelo corpo.

Quase como um reflexo, ou alguma tentativa de confirmar que tudo não passava de um grande pesadelo, levei minha mão esquerda ao rosto e pude sentir na ponta dos dedos o líquido já frio, e quase que completamente seco. Foi a confirmação de que aquele pesadelo era real.

Me virei e empurrei a porta do carro, ao pisar no chão senti minhas pernas tremerem, mas ainda pude caminhar. Dei um passo de cada vez, contando cada um deles até chegar ao velho portão de entrada do galpão, eu não podia vacilar, não queria demonstrar mais fraqueza. Respirei fundo e bati uma única vez, como o código pedia, assim saberiam que era um de nós.

Quando o portão se abriu, não passei despercebida. O senhor responsável pela entrada e saída não fez questão de esconder o espanto, seus olhos arregalaram assim que me viram, odiei aquilo.

Passei depressa pelo corredor, buscando seguir o meu caminho até o vestiário, e a única coisa que me movia era a vontade de me lavar e me livrar daquela sensação de estar imunda.

Enquanto andava, as pessoas no meu caminho abriam espaço para que eu passasse, todos com aquele mesmo olhar de espanto que o porteiro me lançou momentos atrás, me senti como alguém com uma doença fatal e contagiosa, não tive outra reação além de apressar os passos.

Estava quase no meu destino quando Alexia saiu do escritório dela, cruzando o meu caminho e me fazendo parar por um momento. Ela me olhou rápido e seguiu o seu caminho, até que parou, e me olhou outra vez.

— Meu Deus, Katarina, o que é isso? Como você se machucou? — Perguntou me olhando de cima a baixo, ela se aproximou, mas suas mãos tiveram medo de me tocar.

— Eu só preciso me lavar.

Ela me analisou outra vez, seus olhos demonstravam espanto e preocupação.

— O que aconteceu? Alguém pode me explicar?

Ouvi passos atrás de mim e não soube quem era até ouvir.

— Aconteceu um imprevisto. — Era Caio.

Aproveitei a chegada dele e driblei Alexia, a deixando para trás.

— Espera!

Não dei atenção a ela, e não parei, apenas continuei andando.

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