I- Ossos do Ofício

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Em questão de segundos, tudo aquilo que planejamos foi por água abaixo e pegou todos desprevenidos. O dono do mercado se virou e pegou a Ana retirando as notas do caixa, ele havia percebido.

— Ei, o que você está fazendo?

Os meninos, que antes estavam fingindo uma briga, pararam no mesmo instante, desacreditados com o que tinha acontecido. Ana havia sido pega transferindo o dinheiro do caixa para a bolsa e não havíamos planejado solução para aquilo.

— Vocês não vão levar tudo o que eu tenho — disse o velho.

E de repente o plano escorregou por nossas mãos, ninguém esperava por aquilo, ninguém esperava que o plano desse errado. Como era possível um simples senhor de idade em um simples mercado em um bairro pequeno conseguir passar pelo estresse de ver suas coisas sendo destruídas e perceber um plano que até então estava dando certo?

Mas é claro. Ele já havia passado por aquilo.

Para a surpresa de todos, o homem não tinha só percebido tudo como também parecia querer lutar para proteger o que era seu. Ele se afastou de seu lugar perto dos meninos, procurou seu celular no bolso da calça e ao senti-lo gritou dizendo que estávamos sendo filmados pelas câmeras e que ele iria chamar a polícia.

Erick poderia ter fingido não saber daquilo, ser um cliente comum, poderia ter pensado em algo que nos ajudasse a sair daquela situação sem grandes prejuízos, mas ao invés disso, ele riu.

— Quais câmeras? Aquela em cima da porta? Essa sobre a sua cabeça? Ou talvez aquela apontada para a rua? Todas estão desligadas, olhe!

Erick, com sua tremenda arrogância, pareceu gostar do desespero do velho ao ver sua esperança ir embora.

— Impossível — Ele sacou o celular. — Eu vou chamar a polícia agora.

As mãos dele estavam tremendo, tornando visível a sua dificuldade em manter o aparelho firme e longe do chão, porém não durou muito, de alguma forma ele conseguiu encontrar calma e a resposta veio em suas mãos que logo se estabilizaram e conseguiram digitar os números que tanto procurava.

— Não esquece de mandar um abraço meu para os heróis — Erick riu novamente.

Obviamente a chamada não foi completada, e o desespero voltou para o pequeno corpo do idoso a minha frente. Pude notar seus músculos enrijecerem momentos depois de suas mãos deixarem aquele celular ultrapassado cair no chão.

— Não deu certo? Ah que pena — fingiu tristeza. — talvez se não tiver quebrado você possa tentar outra vez.

Erick já sabia que nada funcionaria, pois ele mesmo havia cuidado do sinal do celular, da mesma forma que havia cuidado das câmeras. Ele estava apenas descontando a sua raiva, se divertindo com a situação e o desespero do senhor. Eu decidi intervir.

— Nós não vamos machucar o senhor, já estamos indo embora! — Minhas palavras pareceram ter acordado ele de um transe.

— Vocês n-não vão a lugar algum c-com meu dinheiro — Respondeu com a voz trêmula e com os olhos cheios de lágrimas. — não vou deixar vocês saírem daqui com tudo o que lutei para conseguir, isso de novo não.

Erick deixou escapar outro sorriso sarcástico e então o velho reagiu e levou a mão trêmula ao quadril, sacando um revólver que até então ninguém havia percebido. Como reação, ergui minhas mãos em rendição.

— Calma! Você não precisa fazer isso — Superei o medo e tentei me aproximar, precisava fazer algo, e rápido.

Ele estava visivelmente nervoso e confuso, não sabia se apontava a arma para mim, para a Ana que ainda estava com as mãos no caixa ou para Caio, que por centímetros estava mais perto dele do que eu.

— Por favor, tenha calma, vamos conversar! Isso não precisa acabar desse jeito. — Caio também tentou conversar e acalmá-lo enquanto os outros permaneciam paralisados como estátuas, para que o homem não se assustasse mais, ou talvez estivessem impressionados e com medo demais para se mexerem.

— Vamos fazer assim, você abaixa a arma e nós devolvemos tudo o que pegamos.

O senhor olhava para o Caio, mas não parecia o escutar, era como se a cabeça dele estivesse em um congestionamento de pensamentos, que o levava a travar. Aproveitei que ele estava com a cabeça distante e me aproximei, ficando um pouco mais perto e a frente do Caio.

Meu movimento não foi percebido e eu poderia até desarmá-lo se chegasse um pouco mais perto, não mais que dois metros, talvez menos, me pareceu possível. Andei outro passo e me preparei para avançar novamente. Fui frustrada.

Minha visão periférica me alertou sobre um passo que acabaria com os meus planos, o passo de Caio, que não pensou em ser discreto, muito menos delicado, e se foi percebido por mim, com certeza também tinha sido pelo homem à nossa frente.

— Por que vocês estão aqui?

Ele despertou de seu transe e a arma que antes apontava para Caio já não mantinha o mesmo alvo, dessa vez o meu peito.

O velho senhor não hesitou em acionar o gatilho e, apesar de seu nervosismo, ou talvez devido ao nervosismo, algo nele me dizia que ele não iria atirar, mesmo assim respirei fundo, fechei meus olhos e contei.

"Um,
Dois

...

Antes mesmo que o tempo pudesse ser suficiente para me preparar, o que eu temia aconteceu.

O som de um disparo, o zumbido no ouvido e a sensação do sangue quente tocando minha pele me tiraram e me trouxeram de volta a realidade em segundos. Abri meus olhos com hesitação, o chão se fez vermelho e no lugar se espalhou um cheiro nunca sentido por mim antes, o cheiro da morte.

Knock KnockOnde histórias criam vida. Descubra agora